Quando vou conseguir aqueles 118 livros mágicos?
Pequena livraria é a Acervo, na rua Artur de Azevedo, e fica entre The Little Coffee Shop, da Lisboa, o menor café do mundo como chamamos, e o meu caminho para o banco. Sou daqueles que vão ao banco, é minha hora de caminhar, conversar com as pessoas, saber o que se passa no bairro, descobrir um assunto.
A Acervo é comandada pelo Josué, jovem alto, moreno, de óculos de aros grossos e uma cara séria. Pura fachada, ele gosta de conversar, falar de livros, indicar, promover sábados de poesias. Preciso de um livro, ele vai atrás, encontra. Agora, preciso de tudo sobre Hélio Jaguaribe e a cada semana ele me diz: chegou outro.
Quando, recentemente, falei da Acervo com Antonio Cicero, poeta, letrista, acadêmico da Brasileira, ele me intimou: “Indo a São Paulo, me leve”. Afinal, Cicero, fissurado em sebos, está citado em um livro delicioso de Jorge Carrón, Livrarias: uma história da leitura e de leitores, edição da Bazar do Tempo.
O ano de 2018, aquele em que foi eleito o “mito”, eu diria melhor a esfinge, o indecifrável, estava terminando e passei pela Acervo. Fuço que fuço, encontrei uma série de cartões postais de 1923, capas do Home Magazine, The San Francisco Call. No que virei os olhos dei com uma caixinha de papelão fosca, muitíssimo bem feita.
Apanhei, saltaram dez pequenas brochuras de 15,5 x 11 cm. Todas restauradas com esmero. A primeira era “O isqueiro encantado”, de Andersen, volume 4 da Biblioteca Infantil da Melhoramentos, versão brasileira de Arnaldo de Oliveira Barreto. “Gostou? A caixinha é sua, brinde de final de ano”, disse Josué.
Imagens se fundiram e vi meu pai chegando para o almoço com um pacotinho nas mãos. Eu tinha oito anos. Sôfrego (quem vive hoje, esperando o novo governo, sabe o que quer dizer esta palavra) abri o pacote. Era o volume número quatro da Biblioteca Infantil, a mais cobiçada coleção de crianças que adoravam esta viagem. Comecei a ler na hora, minha mãe alertou: “Leia depois. Comer e ler faz mal”. Coisas daquela época.
Da juventude até hoje acostumei a comer e ler, muitas vezes, em restaurantes, quando estou só, os garçons e amigos perguntam: “Como consegue ler e comer? Não dá indigestão?” Mitos passados, igual ao leite com manga. Pior do que comer e ler é comer e digitar sem cessar as teclas do iPhone, mandando mensagens.
O “Isqueiro encantado” é a história de um soldado que voltava para sua casa e encontrou uma velha que o convenceu a entrar pelo tronco oco de uma árvore e descer para um túnel, onde encontraria três arcas cheias de dinheiro, vigiadas por três cachorros, um com olhos do tamanho de um pires de chá, outro com olhos do tamanho de uma roda de carroça e um terceiro que tinha os olhos do tamanho da roda de mover moinhos. O soldado encheu os bolsos com moedas de ouro, encontrou um isqueiro velho, e subiu. A velha -- que era uma feiticeira má -- exigiu somente o isqueiro que era mágico. Mas o soldado, desconfiado, decepou-lhe a cabeça e se foi. Dali em diante, muito rico, viveu à larga e sempre que precisava de dinheiro acendia o isqueiro, aparecia um dos cachorros e ia buscar mais.
Quando ele quis conhecer a princesa, supervigiada pelo pai, o soldado acionou o isqueiro e um dos cachorros foi buscá-la. Hoje, o conto criaria polêmicas. Como o soldado simplesmente degola a velha e fica com o isqueiro? O politicamente correto está aí para destruir as fantasias. Ora, a velha era feiticeira, má, merecia a morte? Entram juristas, feministas, redes sociais, ONGs, veganos, entra tudo na celeuma. E mandar um cachorro feroz sequestrar uma mulher não é atrevimento, assédio, supremo ato machista?
Uma cena alegraria os leitores de hoje. Quando pretendem enforcar o soldado, ele aciona o isqueiro e os três cães surgem e estraçalham os juízes e ministros. Se bem que hoje contra juízes basta um cabo, segundo notável declaração que li. Cabo de vassoura, de panela, de quê?
A Biblioteca Infantil, creio eu, foi a mais incrível coleção brasileira. Criada pela editora Melhoramentos em 1915 durou até 1958 e publicou 118 tÍtulos, organizados por Oliveira Barreto. Tive uma prima, a Maria do Carmo Mendonça, que tinha todos os volumes e me emprestava um a um. Eu levava, trazia, ela examinava página a página para ver se não havia manchas de gordura ou terra, rasgos. Só aí me emprestava outro.
Para ir à casa dela eram 15 quadras, ou seja, quilômetro e meio. A pé. Assim li histórias clássicas como a do “Patinho feio”, aliás, volume um, “O gato de botas”, “A gata borralheira”, “A serpente negra”, “O cisne negro”, “O Barão de Munchausen” (protótipo dos políticos de hoje, mentirosos e descarados), “O soldadinho de chumbo” (de derramar lágrimas), a “Galinha dos ovos de ouro”, “Ali - Baba e os 40 ladrões”, “A festa das lanternas”. Maria do Carmo morreu e há décadas indago: com quem ficou aquela coleção? Com os filhos do Germaninho, irmão dela? Mas ele se foi há muito. Qual será o acaso que me trará aqueles 100 livros?
Bom ano a todos. Merecemos.
Ignácio de Loyola Brandão é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.