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Primo non nocere

21 de Maio de 2020 às 00:01

Primo non nocere Crédito da foto: Divulgação

Tulio Pereira Cardoso

A frase latina “primo non nocere” em tradução livre quer dizer “primeiro, não faça mal”. Originalmente atribuida a Hipócrates e escrita em grego, dizia: “o médico deve ter dois objetivos, fazer o bem e evitar fazer o mal”. No século XVII o médico inglês Thomas Sydenham, o mesmo que descreveu a coréia reumática de Sâo Vito, segundo citação (1) traduziu do grego para o latim como primo non nocere.

Todo ato médico pode melhorar as condições do paciente, eventualmente curar, mas também carrega dano potencial. O grande aforismo “curou graças a Deus, e piorou graças ao médico” me chateia muito, mas não deixa de ter sua ponta de verdade. Todos os pacientes que evoluiram bem com meu tratamento, certamente creditam isso a Deus. Já aqueles que pioraram!

Após definir o diagnóstico, devemos indicar o tratamento. A decisão ou aceitação é do paciente.

Todo paciente tem o direito de saber dos riscos existentes quando da indicação de um tratamento médico, seja a prescrição de um simples comprimido analgésico até um procedimento cirúrgico complexo.

Como citado pelo médico de família americano, Dr. Lecroy: “É só em não fazer que podemos dar uma garantia de 100% de que não vamos prejudicar”. E prossegue com: “Se a cirurgia é realizada e o paciente morre, então a cirurgia nunca deveria ter sido feita”. Cada medicamento utilizado, cada prescrição escrita, e cada procedimento tem risco; risco de dano, ou mesmo morte (2).

Idealmente devemos orientar o paciente sobre absolutamente todos os riscos envolvidos na nossa proposta terapêutica e obter um consentimento informado para executar esse tratamento. Esse consentimento não isenta o médico da negligência, impericia ou imprudência, mas informa o paciente dos riscos sempre existentes. Observem que a maioria das bulas de medicamentos, sejam quais forem as indicações, elencam inúmeros efeitos colaterais. De alguma forma alertam o paciente, mas por outro lado assustam a tal ponto que o doente eventualmente não o utiliza. Talvez esse seja o mais frequente efeito colateral, não do remédio, mas da bula, ou seja, o não uso contrariando a indicação médica. E via de regra são sempre os mesmos efeitos. Protege a indústria farmacêutica, já o médico!

Primeiro, não fazer mais mal, também deve estar ligado aos objetivos e responsabilidade dos gestores de saúde, sejam eles públicos ou privados. Não podemos pactuar com falhas do sistema, porque fatalmente levarão ao insucesso que certamente será creditado principalmente ao médico.

Denunciar irregularidades e não compactuar com elas é nosso dever e obedece ao preceito do “primo non nocere”. Auditores médicos devem saber interpretar esse aforismo. A população e os políticos devem ouvir os médicos e cientistas da área da saúde, e, de preferência, especialistas nos assuntos em questão.

Precisamos continuar tratando nossos pacientes lembrando que quando os riscos potenciais forem maiores que os prováveis benefícios, devemos evitar essa terapia e buscar outras formas de resolver o problema. Jamais deveremos seguir condutas impostas, seja lá por quem quer que seja, principalmente, se vier de quem não tenha qualquer formação na área de saúde ou se estiver apenas seguindo uma aposta em “alguma coisa” sem qualquer comprovação científica. Em ciência não há lugar para achismo.

O “primo non nocere”, traduzido do original grego deixa bem claro: “Quanto às doenças, faça de duas coisas um hábito: ajudar, ou pelo menos não fazer mal.” (3)

1-Thomas Inmann

Foundation for a New Theory and Practice of Medicine

John Churchill, London, 1860

2-Kenneth Lecroy

The Lie of Primum non Nocere

Am Fam Physician. 2001

3-Jonsen AR

Do no harm

Ann Intern Med. 1978

Dr. Tulio Pereira Cardoso é especialista pela Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia e coordenador da Preceptoria de Ortopedia do Hospital Santa Lucinda, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), em Sorocaba.