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Preconceito e estigma

21 de Setembro de 2019 às 00:01

Preconceito e estigma Crédito da foto: Tranthi Minh Ha e Jenny Vaughan / AFP

Edgard Steffen

O mesmo que impuseste,

Bondoso, a Tua mão

No vil leproso imundo,

Deixando-o puro e são,

(Salmos e Hinos Nº 101)

Anos 40. Adolescente, boa-pinta, honesto e trabalhador sofre desilusão amorosa. Tivesse idade suficiente iria para o Norte da África alistar-se na Legião Estrangeira. Saída honrosa para homens desesperados, verdadeiro suicídio, como indicava “Beau Geste” (1939) filme de grande sucesso da época. Meia dúzia de carraspanas, o trabalho na empresa da família e linda jovem, recém-chegada à cidade, fizeram-no esquecer a ingrata que o abandonara. Logo ficou noivo e se casou com a forasteira. A consorte o brindou com lindo nenê. A criança não completara 2 anos e a polícia baixou no lar do jovem empresário sem sorte. Levaram a esposa, compulsoriamente, ao sanatório de onde ela havia fugido.

Anos 50. Mais precisamente, março de 1953. Na clínica de Propedêutica Médica da Faculdade de Medicina de Sorocaba, afrodescendente alto e forte, foi internado com suspeita de reumatismo. Seria paciente “histórico”; o segundo doente internado para as aulas práticas da Disciplina. Apresentava febre alta, fortes dores articulares e manchas pelo tegumento. Resolveram pedir que um dermatologista entrasse no caso. Experiente, o especialista identificou crise de hanseníase reacional e determinou a remoção urgente do “reumático” para o Sanatório do Pirapitingui. O quarto onde estivera acamado foi lacrado e submetido à formolização por 48 horas.

As duas histórias narradas são verdadeiras. Servem para mostrar o preconceito contra a doença e a absurda política de saúde em vigor. O filho do casal teve a sorte de haver nascido antes da internação compulsória da mãe. Se houvesse nascido no sanatório seria levado a um Preventório -- espécie de creche para abrigar filhos de hansenianas -- de onde poderia sair somente ao completar a maioridade.

A recém-criada Faculdade -- a primeira em cidade do interior -- trazia novidades em seu currículo. Cursos de Tisiologia (estudo da Tuberculose pulmonar) e Leprologia (estudo da Hanseníase). Este último ministrado pelo grande hansenólogo Dr. Lauro de Souza Lima auxiliado pelo Dr. Francisco Ribeiro Arantes, Diretor do Pirapitingui*. Além da fisiopatologia, diagnóstico, profilaxia e tratamento ensinaram-nos a lutar contra o preconceito, vigente desde a Antiguidade. Demonstraram que somente as formas multibacilares (wirchownianas e border-line) são contagiosas enquanto as paucibacilares (indeterminada e tuberculoide) não transmitem a doença.

Dr. Drausio Varella apresentou no “Fantástico” reportagem sobre o mal. Mostrou que a poliquimioterapia (PQT -- associação de antibióticos e quimioterápicos) é capaz de curar a doença pela eliminação do bacilo causador. Desde as primeiras semanas o paciente deixa de ser infectante. A PQT não consegue reverter as lesões já estabelecidas, donde a importância de iniciar a terapêutica antes que apareçam as lesões deformantes.

Fator importante -- não suficiente -- para vencer a estigmatização do Mal de Hansen foi a substituição do verbete “lepra” e seus derivados por “hanseníase” e derivações. A luta contra o preconceito começa aí.

Por isso, impactou-me ouvir velho hino evangélico, cuja estrofe reproduzi na abertura desta. Ao referir-se ao milagre de Jesus (Mateus 8:3), o poeta usou a expressão “vil leproso imundo”. O hanseniano curado por Jesus não era “vil” (desprezível, abjeto, ordinário, insignificante ou escroto) nem “imundo” (nauseabundo, repugnante, excessivamente sujo). Era um infeliz doente que a bondade do Cristo curou.

Perdoe-se o letrista -- mais vítima que réu do preconceito vigente quando o hino foi concebido -- mas, o verso deve ser modificado. Existem inspirados poetas entre os evangélicos. Sem perder ritmo, métrica ou rima, podem escoimar o verso estigmatizante e, substituindo-o, recuperar a beleza da composição do “Salmos e Hinos”.

(*) Souza Lima e Arantes emprestam hoje seus nomes, respetivamente, aos antigos hospitais Aymorés (Bauru) e Pirapitingui (Itu)

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]