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Por favor, abaixe o som

27 de Abril de 2019 às 00:01

José Feliciano

Ando com saudades do silêncio.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) cerca de 10% da população mundial está exposta a níveis de ruído que podem causar diversos danos à audição, perturbação, desconforto, prejuízo cognitivo, distúrbios do sono e doenças cardiovasculares.

No livro “Os homens que encaravam as cabras” de Jon Ronson, que virou um filme péssimo mesmo com o ator George Clooney, que nos deixa em dúvida se ele é o personagem Homem ou Cabra, já que a Cabra teve melhor atuação, o autor Ronson relata experiências reais que beiram a estupidez, adotadas em 1979 pelas Forças Armadas americanas para combater terroristas. Uma unidade secreta do exército americano treinou soldados para usar mantos de invisibilidade, atravessar paredes e até matar cabras só com o olhar.

Pretendiam inventar meios não letais de combater os inimigos e, de certo modo, conseguiram. Desse experimento derivaram as várias armas desde a de choque elétrico, canhões ultrassônicos e, convenhamos, as comidas fast-food, alguns estilos musicais e ídolos de rock, além, claro, Donald Trump.

Os meios de “convencimento” usados pelos americanos foram bastante originais. Um deles consistia em prender um suspeito do Talibã numa sala com apenas uma televisão sintonizada nos bonecos dos Teletubbies -- personagens infantis dos anos 90 -- por 24h ininterruptas e cantando a mesma musiquinha, algo como ouvir: “Turma da Xuxa, aaah!” dias e dias sem parar, até que os insurgentes passavam a colaborar com os americanos ou enlouqueciam a ponto e ficar fãs do grupo.

Os que decoravam as musiquinhas tinham que ser abatidos depois. Ou seja, o ruído e até mesmo a música, pode nos levar do prazer à tortura.

Segundo o falecido neurocientista Oliver Sacks (1933/2015), a música afeta seu humor mesmo quando você não está dando atenção a ela. Pode fazer as pessoas no ambiente se sentirem confortáveis ou desconfortáveis, dispersas ou aconchegadas, animadas ou sonolentas.

O que aconteceu com aquela boa conversa nos jantares, onde se podia entender o que o outro falava e vice-versa sem ter que esticar o pescoço e meter a gravata nos pratos de maionese? Ou pedir para outras pessoas repetirem o que falamos até chegar no interlocutor? Reuniões com música ao vivo descobre-se que vivo é quem não comparece.

Tão logo a banda ataca -- e nesse caso não é uma licença poética --, começam a servir os acepipes, batatinhas, canapés, que não são para comer como muita gente acredita e sim para enfiar nos ouvidos.

-- Luís o vestido da sua mulher está pegando fogo!

-- O quê?! A música está muito alta, não consigo ouvir!

-- Vestido... Mulher sua... pegando fogo! Fogo!

-- Ah! Não vi o jogo! Qual foi o placar?

-- Por favor, avisem que o vestido da mulher do Luís está pegando fogo, está muito barulho.

-- Luís, o Roberval disse que o bagulho da sua mulher está de fogo!

-- O quê!? Eu o mato!

Talvez por isso a linguagem dos sinais tornou-se tão popular. Até a primeira-dama fez uso dessa linguagem e foi o discurso mais ouvido e único compreendido até agora no Planalto. Aliás, todo mundo deveria se comunicar em Libras no dia a dia, quando alguém estivesse “falando muito alto” bastava amarrar suas mãos.

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O fato é que o nível de ruídos nas cidades e ambientes está chegando ao insuportável. Alguém sabe o que é decibel? Uma unidade da física -- logo física é cultura, por isso frequentem academias de ginástica -- utilizada para medir o volume do som e intensidade do barulho num ambiente.

Por exemplo: 194 dB (Decibéis) é o limite fisicamente possível de ser atingido. As bombas atômicas atingem 194 dB, mesmo que você não acredite, não tente fazer isso em casa!

O nível de 184,1 dB foi o maior recorde de som automotivo interno conseguido até 2018, talvez naquele carro que passou de vidros abertos ao seu lado e, se depois disso você não ouviu mais, está explicada a causa. Um show de rock chega a 115 dB e um bar lotado com música ao vivo pode chegar a 115dB também.

Até um piano forte pode atingir 90 dB. Beethoven teve motivos para ficar surdo, como ele era capaz de sentir as vibrações com uma paleta na boca, não é bom nem pensar se houvesse bombas atômicas naquele tempo: não lhe sobraria um dente na boca.

O menor volume de ser alcançado ou silêncio absoluto só é possível dentro de uma câmara anecoica -- uma espécie de quarto almofadado --, que dependendo de seu tamanho e construção, pode variar entre menos 9dB a menos 14dB. Nem adianta procurar nos sites, estão esgotadas. Uma segunda opção são as covas.

-- Amor você se lembra qual foi a música que tocou no nosso primeiro encontro naquele festival de rock?

-- Lembro sim não me sai da cabeça até hoje: Zumbido.

Finalmente, é preciso considerar o “efeito Lombard” -- Etienne Lombard, 1909 --, que explica nossa tendência natural de alterar a voz de forma a compensar os barulhos à nossa volta. É a única justificativa para uma pessoa elevar a voz ao falar ao celular aos berros e tornar uma conversa particular numa narração futebolística. Tão alto que em alguns casos, como falar com uma pessoa do outro lado do continente nem precisaria do aparelho.

-- Seu Oswaldo tenho duas notícias para o senhor uma boa e outra ruim.

-- Pode dizer doutor.

-- Infelizmente devido ao excesso de ruídos do seu último jantar o senhor está surdo e não poderá mais participar deles.

-- Tudo bem, doutor! Agora me dê a notícia ruim?

José Feliciano - Redator de humor e mistério Médico surdo de ocasião.