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Pinheirinho & Pinheirão

30 de Maio de 2020 às 00:01

Pinheirinho & Pinheirão Crédito da foto: Divulgação

Edgard Steffen

Os que estão plantados na casa do Senhor florescerão nos átrios do nosso Deus. Na velhice ainda darão frutos; serão viçosos e vigorosos, para anunciar que o Senhor é reto. (Salmo 92: 13-15)

Se, pelo título, você pensou em dupla sertaneja, vai errar. Reminiscências assomaram-me à mente quando meus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Explico mais adiante.

Ano: 1942. Local: Salão anexo à Matriz. Motivo: Jubilado de professor/lente de Português. Plateia lotada por cidadãos ituanos e estudantes do ginásio local. Homens engravatados, senhoras em toaletes da moda. Nós, convocados pela direção da escola, envergávamos uniforme de brim cáqui, gravata e ombreira azul-marinho. Na mesa diretora, decorada com toalhas e flores, autoridades civis, militares e eclesiásticas segundo protocolo e jargão da época. Ao centro, venerável figura trajava costume escuro, camisa branca, colarinho alto de pontas dobradas, nó da gravata alongado; peito atravessado por áurea corrente do relógio inserido no bolso do colete. Não bastasse a indumentária, cabeleira e bigode alvos como o leite de seu sobrenome confirmavam vetusta idade cronológica. Terminado o rito de formação da mesa, cantado o Hino Nacional, alguém foi à tribuna para protocolar apresentação do conferencista. Advogado, político de grande prestígio, encerrava suas atividades docentes no Ginásio Estadual de Itu. Com toda pompa e circunstância dr. José Leite Pinheiro, sem abandonar seu lugar à mesa, saudou os presentes, agradeceu as homenagens e iniciou magistral conferência sobre a Inculta e Bela. Não me perguntem os conceitos emitidos. Aos 11 anos de vida, a erudição demonstrada pelo velho mestre fugiu à minha limitada compreensão. Longevos eram raridades naqueles anos. Macróbio em plena capacidade intelectual, mais raro ainda. Limitações físicas do conferencista apareciam nas grossas lentes dos óculos e no leve tremor dos papéis em leitura. Voz, forte ainda, pigarreava de quando em vez, levando-o a servir-se do copo dágua. Se você o imaginou frágil, saiba que Dr. Pinheirão -- apelido dado pelos estudantes ao lente -- viveu 97 anos.

Anos após, Dr. Pinheirinho (Dr. José Leite Pinheiro Júnior) foi meu professor de História Natural no curso científico (colegial). Os sufixos “inho” e “ão” reportavam-se às idades e não às estaturas dos respectivos personagens. Respeitado médico pediatra, político, vereador, não se destacava pela altura. Era magro e não usava bigode. Vestia avental comprido. Dominava a classe de agitados adolescentes com natural autoridade. Nunca elevava o tom de voz. Em frases claras e aulas curtas conduzia-nos pelos labirintos da biologia, botânica e zoologia. Montara laboratório onde animais empalhados misturavam-se à vidraria e microscópio. Sempre que a oportunidade permitisse demonstrava, na prática, o que havia ensinado na teoria. Ensino de qualidade para os que aspiravam carreiras na área das ciências biológicas. Mostrou-nos a Euglena -- protozoário dotado de clorofila, o Paramencium nadando no substrato impulsionado pelos cílios, planarias* como exemplo de Plathelmintes (vermes achatados). Manipulando a gilete, Dr. Pinheirinho cortava lâminas finíssimas de cebola e as corava para que pudéssemos observar, ao microscópio, figuras de mitose (divisão celular).

Explico as lágrimas. Prosaica inspiração. Como efeito colateral da pandemia, o confinamento jogou-me à função auxiliar de cozinha. Descascando cebolas lembrei-me do excelente professor. Resolvi escrever sobre duas nobres e respeitadas figuras guardadas no acervo de minha memória.

(*) Planárias - pequenos vermes achatados, de vida livre

Edgard Steffen é escritor e médico pediatra. E-mail: [email protected]