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Perdoar a não culpa

24 de Janeiro de 2021 às 00:01

Crédito da foto: Reprodução / Internet

Leandro Karnal

Será que cada sentimento ou atitude teria uma peça específica no cérebro humano? Ou, como na excelente animação “Divertida Mente” (Inside Out, 2015, Pete Docter), a cabeça da menina Riley tenha uma entidade que rege o medo e outra para a raiva? Por vezes, cheguei a dizer que algumas pessoas que eu conheço teriam sido montadas sem a peça “culpa”.

A responsabilidade por um dano, o peso pela consciência que acusa uma falta minha, a opressão de que poderia ser tudo melhor, se eu tivesse feito de outra forma: eis as molduras tradicionais da culpa. Uma regra não foi observada, uma fronteira foi cruzada indevidamente e eu, autor e responsável, sinto-me mal. Todos temos graus variados de culpa. Todos?

Contarei uma história real. Manda o bom senso que eu mude detalhes menores. Creiam-me: não se trata de uma fantasia.

Fazíamos trabalho na casa de um colega durante a graduação em História. De longe, ouvimos vozes assustadas. A mãe do meu colega estava vivendo uma crise aguda de cólica renal. Como as desgraças soem existir aos pares, a crise renal estava acompanhada de uma excruciante cefaleia, como soubemos depois.

A senhora se retorcia no chão da sala, deitada no tapete porque não conseguia ir para a cama. A dupla crise parecia retirá-la das graças de Deus, como se dizia então.

Tradicionalmente austera e contida, dona Dolores (darei este nome fático) gemia e chorava como se atacada por uma matilha raivosa. Eu, meus colegas e o filho acudimos de forma rápida. Chamamos a ambulância. Olhávamos, impotentes, o quadro chocante a nossa frente.

O que fazer? Cercávamos dona Dolores com travesseiros, segurávamos a mão, anunciávamos que o socorro estava a caminho e, mesmo sem dor, estávamos todos assustados.

Descrevo e vou recordando de tudo. A ambulância estava a caminho porém, antes dela, chegou o marido. Ele era advogado conhecido. O sol se punha naquela sexta-feira de agonias e o doutor Albano (outro nome inventado) se ajoelhou ao lado da esposa, perguntando se o socorro estava próximo.

Todos garantimos que sim, reforçando oferecimento de chás ou água. Doutor Albano retirou-se para o quarto. Menos de dez minutos depois, reapareceu com uma sacola na mão. Perguntou novamente se a ambulância estava chegando. Recebeu nova resposta afirmativa.

Ajoelhou-se e beijou a testa da gemente mulher e anunciou (o horror, o horror) que estava indo para a casa da praia. Insistiu que mandassem notícias dos desdobramentos e saiu quase ao mesmo tempo em que os enfermeiros entravam.

A partir do ato do pai do meu amigo eu estava com a atenção dividida. Uma parte minha ainda se fixava na dor aguda da senhora sendo levada em maca. A outra estava abismada: “Como ele conseguiu ir embora com a mulher em tal estado?” Eu sabia que a relação deles era boa.

Não parecia existir um ódio velado que chegasse a se rejubilar com a desgraça alheia. Dr. Albano, simplesmente, não parecia ter a peça da culpa no cérebro (ou na alma?).

Confesso, de forma psicanalítica despudorada, minha reação foi de pura cobiça. Eu desejaria ter esta imunidade. Eu vivo imerso em culpas, tudo parece insuficiente e me obrigo a esforços titânicos em função do remorso e do dolo. Será que a culpa inexistente no advogado fora dada dobrada a mim?

Minha querida leitora e meu caro leitor: você já testemunhou coisas similares. Em maior ou menor grau, a capacidade se revela sob muitas máscaras. Um amigo perde a mãe no interior e todo o grupo se desloca de imediato para prestar a homenagem póstuma. Alguém, todavia, diz que não irá porque... “é muito longe”.

Estamos na praia com quatro casais e todos chegam e começam a organizar as coisas, lavar a louça de uma casa fechada há meses, esticar lençóis novos, abrir malas, fazer compras e uma pessoa fica... vendo mensagens ao celular. Invariavelmente, depois que tudo está pronto, a pessoa sai do aparelho e pergunta: “Precisam de algo”. Precisam? Bem, precisávamos... Coincidência ou não, a pergunta parece sempre surgir quando tudo está feito.

É, de alguma forma, um privilégio vir ao mundo sem culpa. Podem chamar de folgado, cara de pau, insensível: o sem culpa não se sentirá atacado; afinal, ele é imune.

O mundo demanda bastante. Há pessoas que exploram nossa culpa (“podem viajar, eu ficarei sozinha com seu pai no ano-novo...”). Não sentir a zarabatana com o dardo lançado é pairar sobre o vale de lágrimas,

O doutor Albano poderia fazer algo? Não! Ele sabia disso e nós também. Dona Dolores nem sequer sabia, com clareza, quem estava ao lado dela. Porém, eu não conseguiria ir ao litoral com alguém da família arqueando, álgica, no chão da sala.

Suspeito que a culpa tenha volume constante no universo, como insinuei antes. Assim, toda família tem o irmão ou a irmão excessivamente culpados com tudo (e, quase sempre, “pesados”) e os que vieram ao mundo a passeio, leves e isentos do lodo cotidiano.

Imagino que ambos, culpados e não culpados, dependam mutuamente para o equilíbrio do mundo. Como eu me sentiria melhor se minha alma plúmbea não fosse fonte de orgulho contra os leves e irresponsáveis? Acho que devemos nos perdoar, por sermos culpados ou pela ausência e encerrar nossa querela.

Que os não culpados descansem sobre meu suor e minha incapacidade de fruir. Boa semana aos que iriam para a praia e para os que não iriam em caso similar.

Leandro Karnal é historiador e escritor.