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Pelo direito de divergir

16 de Agosto de 2018 às 16:10

De discordar da maioria, de fugir da manada sem ser atropelado por ela. Pelo direito de expor minhas ideias sem ser rotulado disto ou daquilo por grupos ou associações. O tempo da condenação por cicuta na Grécia antiga já foi para quem pensava ou questionava as verdades do mundo. Atualmente há um veneno maior: o do risco da excreção de quem pensa diferente, um bullying na essência.

O que começou como legítimo direito de ocupar os espaços sociais corre o risco de não deixar espaço para mais ninguém. O politicamente correto virou o tremendamente chato e perigoso. Falar o que se pensa pode resultar em intimidação.

Quem não teve um amigo "vermelho"; ou um "quatro olhos" -- eu fui um deles --, um que não tomava banho e outro que limpava o nariz na manga da camisa? Muitas vezes na camisa do amigo. Quantos lápis deixamos cair para espiar as pernas da professora? Quanto "aprontamos" uns com os outros na escola? E ninguém morreu por isso. Tive amigos pretos; pobres; ricos; burros e inteligentes, mas quem se importava? Na hora "H" eram os "Com camisa" contra os "Sem camisa" e chuta a bola.

Não me lembro de nenhum desses amigos terem se desgraçado pelos "quatro olhos" ou o cabelo vermelho, porque eram muito maiores que isso, se não fossem não sobreviveriam com ou sem cabelo dessa cor ou assim ou assado. Até porque a vida cobra igualmente de todos. Não dá para justificar sucesso e fracassos só pelos bullying, nem tapinhas tomados dos pais, condição social, cor e sexo ou pelo "medo do que vão pensar de mim". Os exemplos de superação estão aos milhares e ninguém quer, de fato, ser "coitadinho" que atrai a piedade. Piedade para quem quiser.

A maioria das pessoas quer respeito e crescer por seus valores. A maioria não quer posar de vítima. Não me lembro de cotas para isto ou aquilo, as cotas humilham, queiram ou não, promovem castas e diferenciação. E ainda deixamos a uma geração sozinha o "erro" de todas as outras para pagar a tal "dívida social" .Impagável. São outros tempos e outros valores ou teremos que pedir indenização por nossos avós e tios que também sofreram e enfrentaram desafios próprios de cada tempo.

Pode- se explicar, mas não modificar épocas diferentes com valores diferentes. Já foi considerado atentado ao pudor usar biquíni na praia. Já se tomou banho vestido no passado. Errado? Certo? Nem um e nem outro, culturas de outros lugares e tempo.

Mas a conta é nossa. E haja conta e desculpas pelo quê? Nem sabemos ao certo. E todos concordamos que se errou ou exagerou, mas é difícil carregar o peso dos erros históricos. É injusto.

Até o conceito de felicidade vai sofrendo seu revés. A sociedade, ou os que se dizem representantes dela, andam a nos dizer como ser feliz agindo do modo. Apontam comportamentos e quem discordar que engula. Sendo que até o conceito de felicidade de uma pessoa ou grupo é mutante em cada época, está sujeito a mudanças. Nos EUA acompanharam-se dois casos emblemáticos: um solteirão de Wall Street ; rico, 40 anos; ganhando uns 300 mil dólares por ano, com tudo que o dinheiro compra de bens a pessoas e uma mulher negra, gorda; 50 anos, da periferia; empregada; com doença nos rins; mantendo a casa com três filhos, o marido com AVC e desempregado. No prazo de um ano o empresário se matou e a mulher negra ainda estava viva quando li a matéria. A felicidade independe de status, dinheiro, cor, saúde e nem beleza; ninguém sabe o que é na verdade!

Talvez nem exista. Talvez sejam felicidades, diminutas que se vai colhendo aos poucos e que "alcançar a felicidade" seja só uma meta como é o Paraíso ou o perdão de Deus. Parece que coube a uma geração a responsabilidade pela felicidade de outros.

Então, discordar, comentar deveria ser livre como a contra-argumentação, ninguém deveria ter medo de dizer o que pensa com civilidade.

Porém, tudo ficou perigoso e caminha para o proibido que é muito pior. Pensar diferente ou defender posições pode virar caso de justiça. Lembra a piada russa dos tempos da ex-União Soviética, quando um sujeito no interior de um ônibus lotado pergunta ao outro ao seu lado: -- "O senhor é da KGB?" E outro responde: "Não". O primeiro insiste: -- "É membro do partido comunista?". E o segundo: "Não!" E finalmente o primeiro conclui: -- "Então tira o seu pé de cima do meu."

Hoje para se fazer qualquer comentário temos que agir como o sujeito da piada, perguntar quais as preferências, ideias, credos, gênero, cor e comportamento antes de entabular uma conversa. Liberdade demais gera repressão e o contrário também é verdadeiro. Corremos o risco de nos tornarmos frios; chatos; sem humor e sem graça. Os tios engraçados, os colegas imitadores; os "tiradores de sarro"; "os contadores de piadas"; "os gozadores" e até os "apelidadores" -- Sorocaba virou até tema de anedota por conta destes últimos, a terra dos apelidos -- estão sendo perseguidos.

Hoje temos uma minoria que vive escondida nas "catacumbas dos WhatsApps", nas conversas veladas, como cristãos sob Roma a ponto de virar antepasto de leões da mídia e de grupos. Um bullying. Ficou perigoso rir, como no livro do Humberto Eco, "O nome da rosa", onde rir significava o pecado e a morte.

Pelo direito de divergir com respeito, de não acompanhar a boiada; de fazer piadas; "de zoar" com os amigos. Pelo direito de pensar diferente sem ser acusado de repressor ou preconceituoso ou maldito. Pelo direito de pensar diferente e ser respeitado também.

Zé Feliciano -- médico e escritor de terror, de humor, de coisas da vida. E até de amor.