Pandemia, Vacina e Ética
Dom Julio Endi Akamine
A vacinação contra a Covid-19 tem despertado debates acalorados quanto a sua eficácia, segurança e obrigatoriedade. Esperança, alívio, entusiasmo se misturam a sentimentos de medo e de suspeitas de todo tipo. Para enfrentar esse debate, é preciso chamar a ciência em causa: a segurança e a eficácia das vacinas são de competência dos investigadores biomédicos e das Agências de Vigilância Sanitária.
A vacina anticovid-19 também tem despertado um debate de natureza ética. Há algumas vacinas contra o vírus Sars-Cov-2 que recorreram, em seu processo de investigação e de produção a linhas celulares derivantes de tecidos obtidos de dois abortos provocados há vários anos. Como se pode notar, a fabricação de vacinas a partir de células de fetos humanos com origem de abortos provocados põe para as pessoas uma grave objeção moral de consciência.
De que algumas vacinas são preparadas a partir de linhas celulares de fetos abortados já se tinha notícia há tempos. No âmbito da Igreja Católica, em junho de 2005, muito antes da atual pandemia, a Pontifícia Academia para a Vida já tinha feito um importante pronunciamento sobre o tema. A mesma Pontifícia Academia voltou a refletir sobre a moralidade de tais vacinas em 2017. A Congregação para Doutrina da Fé também tomou posição sobre a moralidade dessas vacinas em 2008 com a Instrução Dignitas Personae.
Para orientar e esclarecer, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou recentemente, mais exatamente no dia 21 de dezembro de 2020, uma Nota Sobre a Moralidade do Uso de Algumas Vacinas Anticovid-19.
Na intenção de auxiliar as pessoas que se põem o problema moral de receber uma vacina que talvez tenha esse problema ético, procuro expor os esclarecimentos dados na Nota Sobre a Moralidade do Uso de Algumas Vacinas Anticovid-19. Para o leitor(a) interessado e atento às questões éticas recomendo a leitura dos pronunciamentos supramencionados que podem ser encontrados no site www.vatican.va.
É preciso, antes de tudo, fazer uma distinção no grau de responsabilidade moral entre o pesquisar, o produzir uma vacina e o aceitar ser vacinado. Nas situações em que não é possível escolher a vacina a ser inoculada ou em que não há outro tipo de vacina, aceitar ser vacinado não significa para a pessoa uma cooperação formal com o aborto provocado. Quem recebe a vacina não pode ser acusado de ter provocado o aborto do qual resultou as células com que uma vacina foi produzida.
Portanto, uma é a responsabilidade de quem provocou o aborto, outra das empresas farmacêuticas que se utilizam das linhas celulares de origem ilícita, outra ainda de quem não tem poder algum de decidir sobre o modo de produzir uma vacina. Por isso, receber uma vacina problemática do ponto de vista moral não significa legitimar nem mesmo indiretamente a prática do aborto. Assim, levando em conta que a pessoa a ser vacinada não teve poder de decisão quanto ao modo de pesquisar e produzir a vacina, diante do grave perigo da propagação do patógeno, e não havendo outro meio para combater a pandemia é moralmente lícito receber uma vacina que tenha esse problema moral.
A responsabilidade moral recai mais gravemente sobre quem tem o poder de decidir: as indústrias farmacêuticas, os governos, as agências sanitárias. É preciso que esses agentes sanitários, sociais e políticos assumam a responsabilidade de oferecer vacinas não somente eficazes e seguras do ponto de vista da saúde, mas também eticamente aceitáveis.
E se mesmo assim, uma pessoa, em consciência, não deseja receber uma vacina eticamente problemática? Nesse caso, é preciso levar em conta que a vacinação não é uma obrigação e, por isso, deve ser voluntária. A liberdade pessoal, por outro lado, não põe de lado o grave dever moral de buscar sempre o bem comum. A pessoa que não se vacina não está absolutamente dispensada de assumir cuidados profiláticos e comportamentos pessoais que evitem que ela se torne um vetor de transmissão do coronavírus para outras pessoas.
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.