Palavra em excesso e comunicação precária
Dom Julio Endi Akamine
A nossa palavra sempre tende à comunicação com os outros, mas, dependendo da finalidade e do empenho da nossa liberdade, a comunicação pode atingir níveis mais superficiais ou mais profundos.
A nossa comunicação, em algumas ocasiões, pode ser simplesmente utilitária: essa é a linguagem prática das trocas de informações, das ordens, das mensagens, dos jornais, do rádio, da televisão, da técnica profissional. Nesse nível, a palavra é impessoal.
Um nível mais profundo atingimos, quando nossa palavra se torna expressão e testemunho sobre nós mesmos: nós nos expressamos na palavra na medida em que nela nos colocamos a nós mesmos e em que nos dirigimos ao outro como pessoa e não como simples receptor.
A palavra atinge esse nível somente quando a gente se coloca na palavra para entregar o sentido profundo do próprio ser a uma outra pessoa. Assim a nossa palavra se tornar confissão e confidência. É claro que para que isso possa acontecer é preciso que haja respeito, confiança e amizade sincera com o confidente.
Há um nível ainda mais profundo da comunicação humana. A palavra humana atinge a sua maior profundidade de comunicação, quando ela se torna o meio pelo qual duas interioridades se revelam mutuamente na amizade. Quando atinge esse nível, a palavra se torna sinal de amizade e de amor, se torna a expressão da liberdade pessoal que se abre e se doa ao outro. Assim a palavra humana se torna uma doação de pessoa a pessoa. Na amizade e no diálogo de amor, as pessoas se abrem uma a outra e se dão hospitalidade recíproca. Assim, pela palavra, acontece a comunhão de amor entre pessoas.
Quando digo ao outro: “eu te amo com todo o coração” não estou só informando, nem somente confidenciando um sentimento presente no coração. Ao dizer: “eu te amo”, estou oferecendo ao outro a mim mesmo e recebendo-o como o amado. Quando a palavra de amor é sincera ocorre uma maravilhosa presença recíproca das pessoas que se amam: o amado e o amante se recebem reciprocamente. O amado habita no amante e vice e versa.
Preste atenção: quando nos referimos à Revelação Divina, não entendemos Palavra de Deus no sentido de uma comunicação meramente utilitária. Quando Deus fala, Ele o faz para se doar no amor e na amizade. Se a comunicação humana pode atingir a profundidade do amor, muito mais ainda a revelação divina deve ser considerada como uma comunicação maravilhosa de amor.
A intenção de amor da Revelação se torna ainda mais clara e admirável pelo fato de o homem ter recebido a recebido a revelação quando era inimigo de Deus. De fato, pelo seu pecado, o ser humano disse “não” a Deus e dEle se afastou. Mas Deus não abandonou o ser humano em sua solidão e pecado. Pelo contrário, movido pela sua misericórdia, Deus se aproxima do pecador para lhe oferecer o perdão.
Deus leva a sua condescendência ao ponto de assumir a própria condição da criatura pecadora. Ele se solidariza tanto com o pecador que chega a se encarnar.
Com efeito, a Palavra de Deus não é apenas audível. Ela tem um rosto, que podemos ver: Jesus de Nazaré. Em Jesus de Nazaré, Deus chega ao excesso do amor, doando-se a Si mesmo no sacrifício de Cristo. Na paixão, Cristo leva à plenitude a comunicação de amor que Ele veio realizar. Alcançamos assim a perfeição do mistério da Palavra que se doa. A Palavra de Deus, na cruz, emudece e se torna silêncio, porque Se disse até calar, nada retendo do que nos devia comunicar.
No mistério pascal, a Palavra articulada torna-se Palavra imolada. Cristo, na cruz, manifesta o amor do Pai até o grito inarticulado no qual tudo diz plenamente. Na cruz, a Palavra de amor se entregou inteiramente aos homens e se esgota até o silêncio.
Vivemos tempos em que falamos demais e comunicamos pouco; conversamos até a náusea, mas não transmitimos o que eleva e constrói. Nas redes sociais, infelizmente, é comum usar a palavra para mentir, criticar, ferir e ofender sem qualquer freio ético. Canções e músicas elogiam o que deveria nos envergonhar. Para combater essa situação doentia de tagarelice superficial e obscena há um antídoto: aprender da revelação divina a comunicação do amor que se consome até a doação total do silêncio.
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.
