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Paixão, tiros e malas

23 de Abril de 2019 às 23:15

Paixão, tiros e malas Crédito da foto: Vanessa Tenor

Leandro Karnal

Boris Fausto fez um livro memorável: “O crime da Galeria de Cristal e os dois crimes da mala. São Paulo 1908-1928” (Cia das Letras, 2019). Fruto de uma pesquisa nos arquivos do Judiciário e de leitura de vários jornais da época, o livro já encontrou boa acolhida do público leitor com justas razões. Vejamos algumas.

Um jovem advogado, Arthur Malheiros, é atraído para um quarto de hotel por um potencial cliente. Lá encontra uma ex-namorada, desonrada por uma gravidez que o bacharel não assumiu.

Ao perceber a armadilha, era tarde. Levou dois tiros. Albertina Barbosa, a da honra maculada, ainda tentou cortar a cabeça do advogado. Tudo com auxílio do seu atual marido e que tinha atraído a vítima ao desfecho no hotel Bella Vista.

Querem um fato notável? Muita gente ficara ao lado da assassina. A questão da honra tinha se tornado um debate importante e faz emergir os valores da época.

O crime empolga a imprensa como um folhetim real. Escritoras renomadas assumem posições distintas sobre Albertina.

Os advogados a apresentam como uma mulher ultrajada, mas a acusação também constrói a personagem moralmente indefensável, com hábitos estranhos e mãe que abandonara o filho do infeliz bacharel na roda dos expostos. O leitor acompanha o dia a dia do julgamento, a exposição dos juristas e os dados que surgem na imprensa. É um folhetim complexo, a tal ponto que omito o final dos processos para não quebrar o suspense.

Além do crime da Galeria de Cristal que mesmerizou o público paulistano que transitava da modorra provinciana para os anseios cosmopolitas, o livro contém duas histórias com o mesmo destino lúgubre das vítimas: serem acomodadas dentro de uma mala. Os dois foram muito diferentes, todavia despertaram na São Paulo da ocasião paixões similares ao “affaire Dreyfus” que dividira a França anos antes. Imaginamos que, anos antes da nossa polarização política atual, os jantares paulistanos estavam divididos entre quem reeditava ou não, na versão de Michel Trad, o assassino do celebérrimo crime da mala.

Outra razão de o livro ser tão bom: a linguagem é clara, direta, bem elaborada e consegue prender o leitor como se ele acompanhasse o caso dia a dia. Somos levados à cidade de São Paulo na República Velha e vamos acompanhando os desdobramentos, as charges, a reação do público, a posição da imprensa e os julgamentos eletrizantes.

Funciona como uma narrativa bem construída e com o domínio retórico para prender a atenção do leitor. Isso confirma Boris como um grande escritor.

Os dados são bem pesquisados e ordenados e, como é imperativo para um profissional de humanas, existem ampliações sociológicas para entender o universo no qual tudo isso está inserido. Assim, a geografia de São Paulo, o crescimento populacional extraordinário, a situação da mulher na cidade, a imigração massiva, como era o Carnaval, a imprensa popular, o consumo de jornais, a legislação vigente e os valores do século passado emergem com clareza e inserem os fatos diversos (faits divers, na expressão teórica) como os crimes em uma perspectiva muito bem realizada. Isso confirma Boris como excelente historiador.

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Existe um equilíbrio entre o individual e irrepetível com o amplo e sociológico. É incrível como algumas questões do século 21 aparecem em casos antigos, como o debate sobre o show midiático e sua influência sobre o andamento do processo.

As penas seriam duras demais ou leves em demasia? A vida na prisão era uma masmorra ou era um hotel de luxo?

O mundo estaria piorando porque as punições não desestimulavam a delinquência? Em 1908, 1909 e 1928 havia muita gente reclamando que a segurança piorava dia a dia e era culpa do governo do momento. Com anexos jurídicos e sínteses sobre as etapas do processo, vamos acompanhando o debate ao longo do livro.

Fazer um escrito histórico para grande público é um desafio. Se Boris Fausto nada disser da teoria de Roland Barthes ou de Marlyse Meyer sobre os “fatos diversos”, será acusado de factual, narrativo e de ter cedido ao gosto do populacho pelo anedótico.

Se insistir na estruturação de como um crime se insere na ordem social a partir de uma explicação teórica mais ampla, será acusado de academicismo, linguagem pernóstica ou de “escritor confuso”. Pior de todos os crimes: simplesmente não venderá nenhum exemplar.

Bem, a vitalidade da escrita, o rigor da pesquisa e o sabor da narrativa encontraram, no livro de Boris Fausto, um equilíbrio muito bom. A carreira do professor da USP já é exemplar e consolidada e não necessita de elogios e sobreviveria a ataques.

O mais interessante ao fechar o livro é perceber que alguém que não decai o nível da narrativa continua intenso e contribuindo tanto para o conhecimento como para o prazer de ler uma excelente obra como “O crime da Galeria de Cristal”. Há o duplo prazer de leitor comum que acompanha um texto muito bem feito e o de especialista em história que destrinça os fatos e suas costuras sociais.

Casos individuais de uma São Paulo que já não existe, todavia, iluminam a que existe e que ainda se vê imersa em crimes e passionalidades. É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.