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Os muares e as locomotivas

02 de Fevereiro de 2021 às 00:17

Crédito da foto: Fotomontagem / TV

Vanderlei Testa

Na década de 50, nas vizinhanças das rua Manoel Lopes e Santa Maria, moravam famílias que hoje, após sete décadas, se fazem presentes lendo os meus artigos. A advogada Heloísa Dini é uma das minhas leitoras e amiga de infância. Eu recebi dela neste início de ano um telefonema desejando feliz ano de 2021 enaltecendo as histórias relatadas a cada semana no jornal Cruzeiro do Sul. Ela relembrou fatos ocorridos com meus pais, colegas do Grupo Escolar Senador Vergueiro, amigos que permanecem, como o José Osmir Fiorelli. Foi a pedido da Heloisa que ganhei um livro dos tropeiros.

Eu tinha nascido dois anos antes do José Osmir. Lembro-me dele e sua família na casa vizinha onde morava o atual bispo emérito dom José Carlos Castanho.

Comecei este ano lendo o livro “Cantares do Tropeirismo”, escrito pelo José Osmir Fiorelli em parceria com Carlos Roberto Solera. Eu desconhecia que o Osmir é um apaixonado por estudar os muares e os tropeiros. Ele me enviou um exemplar autografado. O Osmir foi um dos colegas de curso primário no Senador Vergueiro. Ele é formado em engenharia, psicólogo e escritor que descreve em versos as tropas de desbravadores tropeiros. Suas palavras nos textos repletos de emoção e histórias contam a linha do tempo nos trajetos das campinas onduladas do Rio Grande do Sul até Sorocaba. Mais de 1.300 quilômetros percorridos a pé e a cavalo e muares no sertão desbravado. Aprendi que o muar é um produto híbrido da união entre equinos e asininos. A união sexual do jumento e a égua resulta no nascimento da mula ou no burro.

Foi em 1730 que as tropas de muares marcaram o início dessa atividade econômica no Brasil. A iniciativa dos comerciantes paulistas em buscar no Rio Grande do Sul o intercâmbio comercial de muares alavancou o eixo empresarial entre os dois atuais Estados. Na época chamada de Província de São Paulo, ela se estendia até às margens do rio Pelotas, no Sul do País. Vale destacar que não havia contrato formal de compra e venda. Valia o chamado “fio de bigode” como compromisso de garantia. A carga transportada pelos muares correspondia em cada bruaca (mala de couro para o transporte de mercadorias) a cerca de 60 quilos de carga cada uma.

Os cavalos crioulos era uma raça muito apreciada pelos criadores gaúchos. Já os da raça Monarca eram considerados elegantes, garbosos e os verdadeiros xodós de seus donos. Os chamados pacholas eram cavalos considerados fogosos e que exigiam freios pela sua constante energia e disposição em cavalgar. No Museu dos Tropeiros da cidade de Castro, no Paraná, pode-se ver os objetos usados pelos tropeiros, como as bolsas jacás. Essa era a maneira como eram acomodadas as malas nas mulas, amarradas às cangalhas.

Sorocaba já teve até restaurante com o nome de “Feijão Tropeiro”. Essa iguaria fez parte de um churrasco que participei no começo de 2021. O feijão é engrossado com farinha e nas tropas recebia charque e toucinho.

Em um trecho dos versos constantes do título “Acampamento”, José Osmir Fiorelli cita: “Mensagens, muitas de amor. Outras de falecimento. Umas, risos, outras, dor. Alegria ou sofrimento; cartas e medicamentos aguardam as tropeadas. O tropeiro é um correio de notícias esperadas”.

Fiz questão de destacar esse verso porque nos conduz a uma realidade daqueles tempos do papel dos tropeiros. Eles exerciam uma destacada missão de comunicadores ao longo da rota de centenas de quilômetros. Atuavam como “carteiros” dos correios. Outra curiosidade refere-se aos chamados “bicho carboneto”. Esse nome os tropeiros davam aos animais infiéis, ariscos e manhosos. E, se havia alguma pessoa assim com essas características, também recebia essa denominação por sua má- índole.

Pelo contrário, havia os bons companheiros de viagem entre os tropeiros. Quem unia a boa índole de cada pessoa era a cuia do chimarrão. Circulando de mão em mão e a mesma biqueira para beber o mate, a cuia ainda hoje é um símbolo da fraternidade gaúcha. Estive em Caxias do Sul e ganhei uma cuia. Aprendi lá a entender melhor o valor da amizade, confiança, camaradagem e companheirismo, numa manifestação simples e original do ser humano.

E como destacam no final da obra os escritores José Osmir e Carlos Roberto, “a poesia possui o dom de contar muito mais do que as palavras narram”.

Tem que ser tropa unida/burro, mula ou cavalo, a cada milha vencida, manterão o mesmo embalo. Desde a hora do início/Ganância e muita fé/Fazem leve o suplício daqueles que vão a pé. No final, esta história repete o que sempre foi: “Notável será a glória daquele bravo senhor, o tropeiro comandante condutor das tratativas, acertador contratante, padroeiro dos birivas” (jovens que procuravam os pampas com a intenção de ficar ou de passagem).

Tomara que em 2021 a população de Sorocaba retorne às tradições dos tropeiros, como se fazia antigamente em eventos culturais promovidos com as tradições da cidade. Tropeiros que saíram de cena com a chegada das ferrovias e seus cavalos fortes e velozes chamados de locomotivas, “Maria-Fumaça”, cujas oficinas da Estrada de Ferro Sorocabana serviam de “estábulos” para alimentá-las com aço e os seus pioneiros maquinistas. E aí entra outra história. Em 13 de janeiro de 1867, Luis Mateus Maylasky, o visconde de Sapucaí, participou, no sobrado da rua das Flores (atual Monsenhor João Soares) e rua Brigadeiro Tobias, da criação da Companhia Sorocabana que construiu uma estrada de ferro ligando Sorocaba e a capital São Paulo. Dia 13, completaram 154 anos dessa iniciativa que mudou a história dos muares em Sorocaba por locomotivas e máquinas a vapor transportando vagões de passageiros e cargas. E no mesmo dia, Maylasky fundou com amigos o Gabinete de Leitura Sorocabano.

Vanderlei Testa é jornalista e publicitário. Escreve às terças-feiras no jornal Cruzeiro do Sul e aos sábados no www.blogvanderleitesta.com e www.facebook.com/artigosdovanderleitesta.