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Os gomos do desejo

26 de Novembro de 2020 às 00:01

Os gomos do desejo Crédito da foto: Reprodução / Internet

Leandro Karnal

Jogando bola com amigos e sem camisa, Guilherme parecia ter um bom corpo. Sua namorada elogiava sua definição muscular. Ele sorria e baixava o rosto, sinal de que concordava com a fala. Porém, ele tinha um “espinho na carne”, como Paulo descreve aos Coríntios. O espinho paulino é um mistério teológico. O de Guilherme é fácil de identificar: abdominais definidos. Sim, nosso jovem é magro, todavia nada indica sob a pele lisa que se agitem as rugosidades que os romanos chamavam de “pequenos ratos” (origem da palavra músculo) sob a epiderme. Inexistia o “tanquinho”.

Guilherme sentia a falta dos gomos e seguia na busca. Houve dietas rigorosas, suplementos, abdominais com peso e corridas épicas. Privou-se de quase tudo de que gostava à mesa e colocou fotos de pessoas definidas na porta do refrigerador. Foram tantas imagens de modelos homens que a mãe já imaginava que não surgiriam netos a consolar sua velhice. Enganava-se. Os fisiculturistas e modelos eram um espelho para Guilherme, uma meta e não uma inclinação erótica. A luta continuava...

Houve riscos à saúde com substâncias mais agressivas. O curioso é que toda a vida do jovem era marcada pelo equilíbrio. Em política, esportes e no trato com as pessoas ele era a imagem da ponderação. O carro da razão só tropeçava no tema abdômen. Inflamava-se. Elogiavam alguém e ele lançava: “É, mas sem abdominais definidos”. Indicavam algum ser de fealdade notável e ele defendia: “Verdade, porém possui abdominais definidos”.

Havia uma neurose a caminho e ela crescia, ao contrário do seu tanquinho. Um dia, Helena sorriu feliz para ele durante um banho a dois, de puro afeto gratuito. Ele se irritou: “Você está rindo porque eu não tenho gominhos, não é?”. Ela se irritou pela quebra do “clima” e disse que ele era lindo e que ela não se importava. Era nítido que as palavras dela soavam assim ao cérebro com tal ferida narcísica: “Sim, você é bonitinho, pena que não tenha abdominais definidos. Se tivesse, eu seria feliz..”

Os esforços de Guilherme atingiram todo o corpo: engrossou os braços, definiu as coxas, realçou o peitoral e desenvolveu o melhor trapézio da turma de amigos. O corpo reagia aos pesos e aos fármacos. A dieta ultrarrestritiva produziu um jovem esculpido. Tudo perfeito. Menos... os abdominais. Ele chegou a ver um site com um implante de matérias rugosas sob a pele que reproduziam os desejados músculos inatingíveis até então. A publicidade em torno de uma morte em busca similar o fez temer.

Os vídeos eram claros. As pessoas de sucesso (no vocabulário guilhérmico isso significava “os com gominhos”) insistiam. O caminho estava indicado: bastava aumentar o esforço. Mais dieta, mais pesos, exercícios em ângulos cada vez mais criativos, um novo personal especializado na região. Ele fazia atividades concentradas para o oblíquo interno, tarefas da tarde para o reto abdominal e não descuidava do transverso abdominal: nem Leonardo da Vinci soubera tanto de anatomia como Guilherme. A gordura do moço estava em índices de competidor profissional. Pernas e peito exibiam fibras felizes. Os abdominais continuavam na Terra do Nunca como um sonho de Peter Pan anabolizado.

Por vezes, ele se sentiu como o Salieri do filme Amadeus: sacrificara tudo e o talento foi dado a um devasso não inclinado ao esforço. Guilherme contemplava Mozarts na academia que já tinham vindo ao mundo com seis e até oito gomos perfeitamente desenhados. Comiam mal, treinavam errado e ganharam da Divina Providência a tal genética privilegiada. Voltava para casa triste e contemplava seu pai com certa raiva. Um dia, durante um jantar, soltou uma reclamação aos progenitores: “Odeio minha genética” e saiu chorando da mesa.

Guilherme cresceu entre os rochedos do desejo denegado e as ondas da resignação. Parou de reclamar em função da crescente irritação de amigos e familiares. Com ajuda psicológica, acabou percebendo que era possível conviver com um grau de frustração e tentou milhares de explicações psicanalíticas para o desejo tão potente.

Os gomos, por volta dos 35 anos, desapareceram naquela fase em que a nau biográfica de cada um já cruzou o Cabo da Boa Esperança e está mais fácil chegar daquele jeito às Índias do que retornar a Lisboa. O diabo velho sabe mais por velho do que por diabo, asseguram espanhóis. A calma sobreveio e, cercado de filhos, de uma esposa dedicada e de um emprego estável, os anos transcorreram tranquilos. Chegaram momentos em que ele, contemplando fotos da juventude em jornadas com anilhas e corridas, pensava que fora tomado por certa psicose. Sorria, feliz, percebendo que era coisa do passado.

Já homem maduro, Guilherme foi diagnosticado com doença de Crohn. O mal resistiu a muitos tratamentos e paliativos. O sintoma de uma diarreia quase intermitente tornou a vida do nosso protagonista complexa, ainda que não trágica. Adaptou-se à perda de peso. Aquele que nunca fora obeso agora estava, extraordinariamente, magro. Nem assim, nem com o avançar da doença, os abdominais surgiram. O corpo cedeu à idade e a complicações variadas. Leve e magro, e sem abdominais, Guilherme foi velado por uma família chorosa. Levara uma vida honrada e produtiva. O tio escultor presenteou a viúva com a imagem de um crucifixo em bronze finamente lavrado. A bela obra foi colocada sobre o jazigo: um Jesus dependurado na cruz, com sua roupa sumária, exibindo oito claros e definidos abdominais. Para sempre, sobre o corpo de Guilherme, a lembrança que, por vezes, há coisas que não se consegue na vida, todavia a ironia sempre vela por todos na morte. Não tendo conseguido seu desejo maior, seria agora julgado por alguém que tinha abdominais sem nunca ter se importado com eles. Acima dele e do mundo, os abdominais divinos e a frustração terrena. É preciso sempre ter esperança, nem sempre é necessário o abdominal marcado. Há coisas que são de Deus.

Leandro Karnal é historiador e escritor.