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O verme de Nietzsche

18 de Outubro de 2020 às 00:01

O verme de Nietzsche Crédito da foto: Reprodução / Internet

Leandro Karnal

Sempre é bom voltar a textos clássicos de tempos em tempos. Reli a tradução de Paulo César de Souza (Cia das Letras) para o Crepúsculo dos Ídolos. Deparo-me com esta tirada: “O verme se encolhe ao ser pisado. E com isso mostra inteligência. Diminui a probabilidade de ser novamente pisado. Na linguagem da moral: humildade”.

Nietzsche não foi o primeiro a associar humildade a fraqueza. Eu sempre li a arrogância como uma máscara da debilidade. Talvez, eu seja mais marcado pelo Cristianismo do que o alemão de Röcken. Mas Nietzsche não está analisando a vaidade, ele critica a humildade tornada virtude quando ela seria, no fundo, fraqueza. Uma ética de escravos, de vermes e de... cristãos.

Humildade tem muitos significados. Pode ter origem em húmus, o solo, pés sobre a terra, realismo. Na Grécia, Aidos era a entidade que patrocinava a modéstia e sua função era evitar o erro. A vergonha que a entidade carregava era uma advertência para nossos limites. Platão ensinou (Diálogos, Protágoras) que Aidos chegou com Diké, a justiça. Eram remédios para a vaidade da espécie que tinha recebido o fogo de Prometeu e andava imersa em autodestruição. Além dos valores citados, Aidos carrega o pudor e a reverência e combate o excesso (hybris) a que as paixões cegas nos conduzem. Aidos anda junto com Sofrósina, a entidade do autocontrole e da discrição. Uma vida harmônica convida Sofrósina e Aidos para conselho permanente.

O Cristianismo associou a vaidade a Lúcifer. O belo arcanjo caiu como um raio pelo peso do valor que se atribuía. A humildade foi tornada virtude-guia. Deus é o único poder e nós, criaturas, devemos tudo a Ele. O humilde pede desculpas porque se reconhece capaz de desvio (como lemos em Tiago 4, 8-10). O trecho bíblico vê valor na tristeza também. Jesus insistiu que servir era o patamar superior e ser humilde, uma meta. Quem quiser ser grande aos olhos de Deus deve se tornar servo de todos (Mateus 20, 26-28).

A humildade é mais uma estratégia na cultura grega. Serve para avaliar sua dimensão real e evitar a desmedida. No Cristianismo, ela se torna um eixo de comportamento para reconhecer a ordem da criação. Em outras tradições, Buda colocou a mão no solo e disse algo distinto: ele não era melhor nem pior do que todo mundo. Não se trata do caminho cristão (humilhar-se para crescer aos olhos de Deus), mas de uma consciência dupla: meu caminho é o meu e nada é maior ou menor.

Tentarei ser mais didático. Martinho de Porres (1579-1639) é um santo peruano, filho natural de uma mulher negra e de um espanhol. Sendo simples, negro e bastardo, os dominicanos de Lima o aceitaram como um irmão leigo. Tornou-se conhecido como “irmão vassoura” por viver limpando e varrendo. Humilde ao extremo, gostava de pegar as sandálias de um frade que era famoso por usá-las até o fim. Depois que o religioso dispensava a peça, Martinho a recolhia, fazia algumas gambiarras e ficava com elas. Assim, sua humildade e pobreza em levar adiante o projeto que, na época, aproximava de Deus, e, hoje, é chamado de sustentabilidade. Por ser caridoso com pobres em grau heroico, humilde nas tarefas, zeloso em cumprir a ordem citada do Evangelho de Mateus, tornou-se um santo. Considerou-se servo de todos, o mais humilde.

Buda diria que existe algum orgulho em ocupar o último degrau, tal como poderia existir no primeiro. “Sou o mais culto de toda a escola” anda de mãos dadas com “sou o mais humilde aqui”. A tentação vaidosa do bem é ambígua. O caminho do meio é a indicação budista.

Não duvido da intenção justa e do resultado épico de Martinho. Dizer que uma pessoa que auxiliava tantos outros pode não ser humilde seria, sempre, minha vaidade que indica erros em santos como se eu fosse um modelo para algo. O mundo estaria bem melhor com mais Martinhos, claro, e talvez pior com mais Leandros. O que assinalo é: existe o risco de a humildade ser estratégia de vaidade. “Sou o mais terrível pecador aqui” pode ser sentido como uma eliminação da minha vaidade ou uma exaltação de como cumpro o despojamento total e me aproximo de Deus mais “do que aquelas pessoas cheias de vaidade”. Como já escrevi no Estadão, há duas maneiras de eu exibir minha superioridade na rua: arrumando-me para ser a pessoa mais bonita do evento ou indo desleixado para demonstrar como sou superior a essa gente rasa e devotada a aparências. O orgulho do vício é tão perigoso como a vaidade da virtude.

Na verdade, o verme de Nietzsche é prático. Não se compara a um menor nem se humilha diante do maior. Quer sobreviver e, ao ser pisado, percebe que pode morrer. Encolhe-se de dor, não de humildade. A vida vem antes de vícios e de virtudes. Defender a vida é o primeiro patamar. A mais humilde das minhocas sabe do valor da vida. Algumas pessoas ainda precisam aprender. Que seja uma excelente semana para os que gastam fortunas em sapatos e para aqueles que usam a mais despojada sandália da humildade.

Leandro Karnal é historiador e escritor.