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O Tribunal Penal Internacional, os crimes contra a humanidade: caso Evo Morales

10 de Setembro de 2020 às 00:01

Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro

No dia 4 de setembro, o ex-presidente da Bolívia, Juan Evo Morales Ayma, foi denunciado no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, nos Países Baixos. A denúncia responsabiliza Morales pela morte de pelo menos 40 doentes por falta de fornecimento de gás oxigênio durante a pandemia da Covid-19. O Ministério Público da Bolívia acusa Morales de cometer crimes contra a humanidade. O ex-presidente haveria convocado seus apoiadores políticos para prejudicar o governo da presidente interina, Jeanine Añez-Chavez. A atual presidente acusa Morales de terrorismo e genocídio pelo bloqueio das estradas durante 12 dias. O bloqueio impossibilitou os suprimentos hospitalares, dificultou o transporte de alimentos e, inclusive dos próprios profissionais da saúde.

Morales governou a Bolívia durante três mandatos consecutivos, de 2006 até 2019, quando renunciou, depois de reivindicar outra vitória eleitoral em outubro de 2019. Após relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA) mencionar indícios de fraude e irregularidade no pleito eleitoral, Morales aceitou convocar novas eleições. Sob pressão das forças armadas bolivianas, o ex-presidente decidiu deixar o cargo, conseguindo asilo no México e, posteriormente refúgio na Argentina.

O ex-presidente é acusado de crime contra a humanidade, no entanto é importante observar que esse conceito de crime deve ser analisado sob a perspectiva histórica. A noção de crime contra a humanidade foi propagada pela primeira vez em 1915, no genocídio do povo armênio perpetrado pelo Império Turco-Otomano que controlava uma vasta região. Em 28 de maio de 1915, os governos francês, britânico e russo decidiram reagir com veemência. Os governos dos três Estados consentiram acerca de uma declaração em que o Império Turco-Otomano deveria responder pelos crimes praticados, assim como seus agentes públicos envolvidos no massacre.

Não existia propriamente a expressão “crime contra a humanidade”, naquela proposta do Chanceler russo Sazonov. A ideia era demonstrar repúdio aos crimes cometidos contra cristãos e a civilização. Entretanto, houve discordância por parte do Chanceler francês Delcassé sobre a utilização do termo “cristãos”. O receio de Delcassé se fundamentava no fato de haver uma significativa população muçulmana sob o domínio de franceses e britânicos que poderia se sentir preterida pelo fato da expressão não abarcar a religião islã.

Como mencionado por Cassese, em seu livro International Criminal Law, a questão girava em torno de “philosophical implications of the phrase they had used”, ou seja, havia uma implicação filosófica na expressão utilizada. O interessante é que havia uma discussão filosófica naquele período para solucionar um problema político que seria de curto prazo. No início do século 20, era imprevisível a dimensão que a tipificação de crimes contra a humanidade iria adquirir no final do século e no início do século 21.

Em 1915, no debate da chancelaria sobre os crimes contra a humanidade, era um passado bem distante da adoção do Estatuto de Roma, em 17 de julho de 1998, que criou o TPI. O Estatuto entrou em vigência no dia primeiro de julho de 2002, foi promulgado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, no Decreto no 4.388, de 25 de setembro de 2002. A criação do TPI simboliza uma evolução ao possibilitar que indivíduos também sejam julgados sob a égide do direito penal internacional. Uma das imposições do Estatuto é que este tratado internacional seja ratificado sem reservas, portanto os Estados que o ratificaram, como a Bolívia e o Brasil, devem cumpri-lo em sua integralidade. Isso significa que ex-presidentes e presidentes em exercício dos Estados que tenham ratificado o Estatuto devem atender todas as suas cláusulas e não cometerem crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra, e de agressão.

Profa. Dra. Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro - Universidade Federal do Pampa (Unipampa), campus Santana do Livramento (RS), área de Direito Internacional. Doutora pela Universidade de Leiden/Países Baixos