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O Sítio do Capão Grande

16 de Fevereiro de 2019 às 00:01

O Sítio do Capão Grande Crédito da foto: Vanessa Tenor

Edgard Steffen

Livros de Monteiro Lobato passam ao domínio público.

(Dos jornais)

A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda aos pais, em vez de brinquedos eletrônicos, darem livros para estimular nos filhos o hábito da leitura. Em bonita reportagem, Larissa Pessoa¹ lembra que “além de proporcionar experiências, hábito de leitura pode afastar doenças”. Alzheimer incluso. Depoimentos coletados pela jornalista mostram que familiais que leem influenciam a formação de novos leitores.

Ignácio de Loyola Brandão aprendeu a gostar de ler com velha coleção de clássicos da literatura infantil (lendas medievais européias) publicados pela Editora Melhoramentos na década de 1930. Confessa que sua notória erudição começou com a coleção de Monteiro Lobato.

A professora Myrna Atala Senise, combativa e competente em tudo que se refere à inculta e bela, diz ter devorado “aqueles livros de capa dura” escritos, editados ou traduzidos ou por Lobato.

Quero me enquadrar nesse honroso time. Antes de ser alfabetizado, observava meus pais lendo livros e jornais² com aquelas letras esquisitas do alemão impresso em gótico. Meus irmãos e irmãs, além dos jornais, estavam sempre com livros em grafia comum. Eu olhava figuras. Belmonte, na Folha da Manhã, com suas caricaturas facilitou-me, anos mais tarde, reconhecer os principais protagonistas da Grande Guerra. Depois viriam quadrinhos do Globo Juvenil, a coleção da Melhoramentos (citada por Loyola) e os almanaques Capivarol e Biotônico Fontoura. Neste a figura do Jeca Tatuzinho -- espécie de avant-premier do Jeca Tatu que eu iria ler e reler no Urupês.

Alfabetizado, comecei a buscar livros. A biblioteca da escola quase inteiramente dedicada ao ditador Getúlio Vargas. A leitura de Lobato devo a um amigo, filho do mais ferrenho adversário político de meu pai. Emprestou-me, um a um, todos os livros. Pude viver as aventuras de Pedrinho, Narizinho, Emília, sob as vistas de Dona Benta e Tia Anastácia.

Por haver morado no Capão Grande, histórias do Sítio do Pica-pau Amarelo tinham sabor especial para mim. Tia Martha era versão germânica de Dona Benta. Em vez da negra Anastácia, ajudavam-na nos afazeres da casa e da comida, jovens agregadas -- menos que filhas, mais que empregadas -- trazidas pela necessidade ou infortúnio. Lembro-me de uma cujo pai, jornalista, se jogara sob o trem do metrô em Buenos Ayres.

A filha mais velha, Dalva, poderia ser a Narizinho. Ela e as primas, em férias no sítio, brincavam com Emílias de louça ou pano. Seu irmão Brudi fazia as vezes do Pedrinho das caçadas. Com nossos estilingues atirávamos, naquilo que se podia comer (frutos no alto das árvores, preás, jurutis) ou era nocivo à propriedade (ratos, gaviões e ladrões do galinheiro como gambás e teiús). Proibido matar passarinhos.

Não havia nenhuma Anastácia, mas tinha o velho Daniel -- escravo abrigado pelos meus tios. Fazendeiro mandara incendiar o casebre onde vivia, para expulsá-lo da propriedade. Veio morar no quarto junto à casa dos arreios e insumos. Não lhe cobravam serviços nem aluguel. Cardiopata, faleceu com mais de 100 anos.

Não precisei nenhum esforço para imaginar o Visconde de Sabugosa nem o Marquês de Rabicó. Milho seco com palha e sabugo faziam parte do alimento da criação. Suínos de rabinho enrodilhado havia tanto na pocilga -- como na ceva. Ao meu tempo não havia onças. Na parede da sala, cartucheira ao lado de peles esticadas, lembrava a fera pintada e a jaguatirica que ousaram atacar o plantel. Nas noites de céu limpo, fácil distinguir estrelas piscantes dos planetas de luz parada. Qualquer pé de vento fazia redemoinhos, mas não acreditávamos em sacis. Os raros nós nas crinas dos equinos sabíamos atribuí-las a morcegos vampiros.

Será que meu neto e bisnetos, nascidos e criados na zona urbana, desde muito cedo manipuladores dessas maquininhas cheia de luzes, imagens e movimentos, encontrarão o mesmo encanto que encontramos nos livros de Lobato?

1 Pessoa, L. Cruzeiro do Sul 09/02/2019

2 Deutsche Zeitung

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul - [email protected]