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O perfume

14 de Outubro de 2018 às 09:08

Quando li o romance de Patrick Süskind (O Perfume), tive a sensação de que meu olfato cresceu a ponto de eu perceber mais detalhes de fragrâncias ao final da leitura. O filme não me causou o mesmo impacto, mas o livro virou uma aventura de memórias com cheiros, a clássica evocação sinestésica. Passei muito tempo sentindo ter maior consciência olfativa.

Nariz é um fenômeno cultural. Os homens da corte de Luís XV, lembra o autor citado, fediam como cadáveres. Ninguém parecia se importar com a pestilência nauseabunda de Versalhes. O protagonista malévolo do romance usa da capacidade de um nariz absoluto para explorar afetos e controlar pessoas. Ainda tenho saudades da leitura do texto que evoquei quando visitei lojas de perfumes artesanais em Veneza. Toda essência é um passaporte carimbado para a imaginação.

O livro divertido de divulgação de Katherine Ashenburg (Passando a limpo - O banho da Roma antiga até hoje) mostra uma história cultural do banho e dos equipamentos de banheiro. Passar água sobre o corpo diariamente foi, por séculos, hábito desaconselhado por médicos. Era considerado perigoso banhar-se com frequência.

Há povos mais obsessivos pelo banho, outros menos. Nós brasileiros, na média, somos muito ligados ao hábito. Há quase 30 anos, fazendo pesquisa em Sevilha, com calor de 45 graus o dia todo em julho, eu tomava banho ao sair e ao me deitar. A dona da pensão simples onde eu estava perguntou-me se eu tinha uma doença e eu expliquei que sim, que eu sofria de mal atroz, e incurável: ‘Eu fedo, senhora‘.

Eu sei, para alguns gramáticos, feder é defectivo e não se conjuga na primeira pessoa. Da minha parte, considero o verbo que mais precisa da primeira pessoa em toda a língua portuguesa.

O nariz é cultural e cronológico. Perfumes que minha avó e mãe gostaram muito, hoje, provavelmente, seriam considerados doces demais. O excesso de perfume é, hoje, mais visado do que outrora. Uma colega professora se afogava em uma essência que lembrava melancia um pouco passada. Sua presença era sentida muito antes de ser vista. As gerações atuais parecem preferir cheiros amadeirados ou cítricos.

Aromas têm o dom de serem lembretes silenciosos, discretos, invisíveis e poderosos sempre. Ando pela rua distraído e, de repente, do nada, sou tomado pelo perfume da dama-da-noite e paro para localizar a planta. É o grito-mudo mais notável que eu conheço.

Nariz é cultural, cronológico e, igualmente, social. Cada cheiro indica uma origem na pirâmide de renda. Chá branco com um toque de âmbar: você tem dinheiro há várias gerações. Alfazemas intensas com jasmins marcantes: sua renda é menor.

Perfumes são assinaturas pessoais. Você sente um aroma único, delicioso, inebriante em alguém. Pergunta o nome do perfume, registra e compra. Ao passar em você, descobre que a rara combinação química com sua pele produz algo insuportável.

Cheiros são memórias. Os corredores do colégio São José da minha infância sempre recendiam a pão sendo assado pelas franciscanas. No dia em que enterrei minha mãe, dormi na cama dela abraçado ao travesseiro. Era o único lugar que o cheiro dela ainda existia. Foi uma cerimônia de adeus nasal.

Marcel Proust criou a mais evocativa cena de sinestesia da história literária no romance Em Busca do Tempo Perdido, na qual a personagem toma chá de tílias e morde bolinhos Madeleine, evocando muitas memórias.

Meus olhos pioram ano a ano. Meu nariz insiste em ficar mais sensível. Os cheiros que eu amo como a manga ou o café parecem hoje mais intensos. Os cheiros ruins ficaram mais insuportáveis. O odor mofado com uma ‘hola‘ de ácaros é uma pororoca sobre minha rinite. O abraço em alguém inundado de sândalo ou de outro cheiro forte é acompanhado de espirro involuntário, por vezes incontrolável, sobre a vítima perfumada.

A santidade, diz a tradição católica, pode ser acompanhada do aroma de rosas. Rosa tem um cheiro perfeito na flor, porém, retirada a essência da origem vegetal, sempre corre riscos de excesso ou vulgaridade. A santidade poderia ter cheiro de chá branco, um toque de romã, ares de limpeza profunda feita com água e claridade do sol iluminando um aroma só percebido em uma segunda aspirada.

O inferno tem o fedor sulfúreo e sua sucursal é um metrô em alguns lugares do exterior, fim de tarde de verão, com povos menos afeitos ao pudor da assepsia.

Bebês são ciclotímicos... em condições usuais de temperatura e pressão têm um cheiro inconfundível e agradável. De repente, uma espremida aqui e outra acolá, um som nefando e o cheiro maravilhoso do infante vira horror absoluto.

Como podem ingerir papinhas de maçã perfumadas e expelirem aquilo? Que processos ocorrem naqueles delicados e recém-inaugurados trâmites intestinais com tal poder alquímico? Ato contínuo, a mãe ou o pai zelosos restauram a ordem no caos olfativo, limpam, hidratam, trocam, perfumam e o ser volta a assumir o aroma de um pequeno anjo celeste, sorridente e etéreo.

O mundo tem sons, cores, texturas, gostos e cheiros variados. A maravilhosa máquina do corpo humano distingue infinidades de estímulos e recria cada um a partir de memórias criadas e inventadas. Perfumes bons são estradas de memória. Memórias têm odor. Qual seu odor preferido? Bom domingo para todos nós.

Leandro Karnal é da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.