O passado neva sobre nós
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Leandro Karnal
Régine Robin nasceu de pais judeu-poloneses na França. Atua como professora, escritora e tradutora premiada no Canadá, ou melhor, talvez ela preferisse: no Quebec. Na graduação, conheci um trabalho impactante dela, uma memória do encontro do pai com Lenin na guerra da Polônia (“Le Cheval Blanc de Lénine”, 1979). É um exercício sobre memórias vividas e denegadas. Tenho fascinação pela reinvenção das memórias familiares.
Em 2016, a editora da Unicamp colocou no mercado outro texto importante de Régine Robin: “A memória saturada”, obra original de 2003, com tradução de Cristiane Dias e Greciely Costa. Os capítulos são variados, indo do Oeste americano à internet, da memória do Holocausto ao uso de fotos nas redes. A primeira parte do livro, “Presenças do passado”, é daquelas digressões teóricas sobre memória e história que todo estudante de humanas precisa ler para pensar a pesquisa.
Quando conheço o texto de uma mulher brilhante como Robin, sorrio internamente, ficando feliz, como se eu supusesse, ao longo das páginas, que a vida vale a pena e que a humanidade produz gente que pensa e que, mesmo em meio a tantos tumultos políticos e tragédias, um indivíduo consegue ir além e produzir coisas belas. Ler pessoas que pensam mais e melhor do que você é um exercício de colocar-se em perspectiva. Se alguém achar que a frase anterior é uma retórica vazia de humildade, engana-se profundamente. Incessantemente há um espaço perspectivo de comparação e, creia-me, os mais competentes são numerosos.
O passado cacofônico e inquieto é o objeto da obra. A figura da neve tornada cinzas é forte; o autor é Jean-Christophe Bailly, poeta e dramaturgo francês. Quais neves? A neve queimada de Stalingrado, pensa a autora, a neve suada de Kolyma (um assustador campo de trabalho forçado na Sibéria), a neve fúnebre de Birkenau e até a neve de concreto espatifado do World Trade Center continua silenciosa no ar. O pretérito vira flocos pesados sobre nós com suas dores que precisam ser ressignificadas e enunciadas em um mundo de registros instáveis e passageiros.
“O passado não é livre. Nenhuma sociedade o deixa à mercê da própria sorte. Ele é regido, gerido, preservado, explicado, contado, comemorado ou odiado. Quer seja celebrado ou ocultado, permanece uma questão fundamental do presente” (“A memória saturada”, p. 31).
Memória é fato complexo para a área de humanas. Freud analisou que o ato de lembrar é repetição e um conceito de complexo de “perlaboração”, neologismo proposto para dar conta do termo alemão “Durcharbeiten”. É um percurso interno do indivíduo, superar dificuldades através (Durch) de um trabalho (Arbeit), ou seja, trabalhar-se utilizando alguma tarefa. Como os indivíduos, sociedades discutem e cultuam/negam memórias pelo percurso interno do diálogo com suas feridas narcísicas. Disso decorre a advertência de Walter Benjamin que serve de epígrafe à obra “A memória saturada”: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.
Benjamin (1892-1940) viveu uma época de choques indescritíveis para nós. O horror do nazismo o deslocou da sua Alemanha natal em fuga até que, diante da hipótese de captura e de uma fronteira fechada, acabou cometendo suicídio, em 1940. Era um mundo ainda mais violento do que o nosso e pioraria até o final da guerra. Imagino que a cabeça do genial Benjamin seguiu mais o imanentismo da sua influência marxista e um pouco menos de outro grande luminar do seu pensamento, o especialista em mística judaica Gershom Scholem (1897-1982). A mística costuma retirar o olhar do momento passageiro e atual para uma mirada mais ampla, companheira de desejos permanentes.
Esses são percursos da memória que neva sobre todos nós. De um lado fatos, pessoas, crises e conjunturas que gritam: “aqui, agora, momento, matéria, ação”! Do outro lado, as colinas mais permanentes que nos superam, que estão além de nós, o tempo em si e o universo sobre nós que proclamam “todo lugar, sempre, eternidade, impermanência”. A ponte entre as duas instâncias é parte essencial do nosso equilíbrio. O texto de Régine Robin tenta entender a ponte que criamos de memórias voláteis e coisas permanentes. Walter Benjamin queimou essa ponte e abandonou a possibilidade de sair do momento, que, sabemos, foi passageiro. A fronteira que ele viu fechada foi reaberta, horas depois de ele ter tirado a própria vida. Além de pensar muito como Benjamin, é preciso ter esperança sempre. A neve do passado é fria e, com frequência, trágica. Contém restos humanos e histórias de dor. A neve das fábricas da morte de Kolyma ou de Birkenau mostra que somos capazes de coisas absolutamente terríveis. Um dia, depois de muita dor, desponta breve primavera, aquela que Benjamin não conseguiu ou não pôde esperar. Provavelmente, eu teria feito o mesmo que ele... ou não. Impossível saber. Gershom Scholem era especialista em mística e, vendo seu mundo de origem queimar, decidiu ajudar a construir outro país.
Morreu professor em Jerusalém. Sempre é preciso ter esperança e anseio de uma primavera. Sob as calçadas há uma praia (“sous les pavés, la plage”), diziam os jovens revolucionários de 1968. Régine Robin lembra que é a praia do Club Méditerranée. Bem, faz menos frio do que em Kolyma. Sempre, acima de tudo, a esperança.
Leandro Karnal é historiador e articulista da agência Estado.