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O nome que eu desejo e o apelido que eu tenho

03 de Julho de 2019 às 00:01

O nome que eu desejo e o apelido que eu tenho Crédito da foto: Johannes Eisele / AFP

Leandro Karnal

Há povos que gostam de apelidos. Brasileiros, hispanos e norte-americanos estão entre os principais. Quase ninguém imagina que Bill Clinton seja, na verdade, William Jefferson Clinton. Difícil supor que um Pepe mexicano seja José e um Pancho tivesse chegado ao batistério como Francisco. Bem, qual estrangeiro suporá Chico como apelido de Francisco? Em eras pré-politicamente corretas, abundavam os “japas”, os “chinas”, os “gordos” e os “carecas”. Hoje, tudo implica risco.

Além do apelido, existem apostos que qualificam mais do que uma simples alcunha. Por vezes, são qualificativos positivos: Alexandre, o Grande; Luís XIV, o Rei-Sol; Luís XV, o Bem-Amado; e, no campo republicano, Simon Bolívar, o Libertador. Podem ser eufemismos para defeitos, como a indecisão crônica de Filipe II da Espanha. A história oficial o registra como Filipe, “o Prudente”.

Há as diferenças nacionais. A única rainha do Antigo Regime português é conhecida na terrinha como D. Maria I, “a Pia”. No Brasil, por vários motivos, ela é “a Louca”. Há qualificativos que implicam ida ao dicionário. José de Anchieta é “o Taumaturgo” (aquele que faz milagres) e São Leopoldo, imperador da Áustria, é conhecido como piedoso e margrave, um administrador de fronteiras. Há profissões que se tornam superiores ao portador: Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”. Quem lembraria do genial artista Mestre Didi se soubesse que sua denominação de registro civil é Deoscóredes? É interessante chamar a última soberana Tudor, Elizabeth I, de intensa vida sexual, como “a Rainha Virgem”. Em sua homenagem, surgiu a Virgínia, na costa atlântica dos EUA. Tenho de imaginar, se, a retórica de adulação da corte inglesa fosse mais crua qual teria sido o nome da terra nova da coroa? Deixo aos estimados leitores e às queridas leitoras o exercício de imaginação para rebatizar a Virgínia com maior realismo.

Por fim, os mais interessantes, claro, são os qualificativos pejorativos. Luís VI da França é “o Gordo” e Carlos II da Espanha é o “Enfeitiçado”. Luís II da França passa à história como “o Gago” e um imponente Plantageneta é apenas um... João Sem-Terra. O pai de Carlos Magno tem qualificativo ambíguo: Pepino, “o Breve”. O mais venenoso parece ser reservado para o rei de Castela: Henrique IV, “o Impotente”.

Os qualificativos para famosos são uma maneira de defesa dos fracos. Não posso derrubar presidente, não tenho a fama de um craque, não tenho o dinheiro de fulano: tasco-lhe um apelido como a vingança do bagre diante do hipopótamo. Rio um pouco, divulgo diante do meu limitado grupo igualmente ressentido e me sinto vingado. Apelidar de forma negativa é, quase sempre, reconhecer minha inferioridade. Fazer graça com a característica alheia pode revelar o mico interno de cada um de nós. Nosso macaquinho é inferior aos grandes símios. Em choques, apenas temos a possibilidade de subir rapidamente em galhos mais finos do que os rivais poderosos poderiam. Escalar e gritar: orangotango bobo, gorila vacilão, chimpanzé flácido! Lá de cima, protegido pela nossa fraqueza-força, rimos do maior. Apelidar é defender-se e tentar, ao menos na fala, vencer quem parece superior a nossas forças. Classificar o outro de tonto traz alívio; por exclusão, eu não sou.

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O apelido pode ser carinhoso, todavia, com frequência, é agressivo em tempos de redes sociais. Ocorre um fenômeno curioso. Os pais, orgulhosos dos seus rebentos, colocam nomes civis longos, abusam das consoantes dobradas, aspirações nobiliárquicas e multiplicação de termos. O nome contém um quase-título de barão, uma passagem que faz o portador sair da pasmaceira do comum e flutuar entre os escolhidos de estirpe inatacável. Os afetos intensos de mães e de pais, somados a forte ressentimento social, são o solo fértil para registros que, olhados de forma distante, parecem indicar linhagens de duques sólidos desde a Primeira Cruzada.

Ao afeto com nomes desmedidos, choca-se a realidade do uso cotidiano. Como pronunciar aquele exercício de imaginação pretensiosa? Como chamar brevemente a pessoa que ostenta um verdadeiro tratado no seu simples nome? Aí emerge o apelido para simplificar o mundo. Qualquer exemplo que eu der será tomado como ofensa capital. Assim, querida leitora e estimado leitor, só resta pedir que você imagine seu colega de sala ou vizinho que ostenta aquele nome que parece um verso alexandrino e saber que, invariavelmente, a imponência será sintetizada em palavras de uma ou duas sílabas. Princípio impossível de ser ignorado: ao pensar o nome do seu filho ou filha, suponha as possibilidades de apelidos como parte da estratégia da escolha.

Nem sempre os olhares sobre o ser que você gerou serão de total complacência e simpatia. Pode ser que, diante de olhares públicos ou de dependentes financeiros, o nome seja enunciado com toda pompa. Assim foi com o rei James II, Stuart, na Inglaterra. Pelas costas e quando os anglo-saxões já tinham destronado o odioso monarca, ele passa para a história como “James, the Shit”. O decoro de um texto em um jornal tão importante impede que eu faça a exata tradução do termo. Ao final, todos sabemos, o tempo revela e desgasta nossas pretensões e solenidades. É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.