Buscar no Cruzeiro

Buscar

O jubileu do gigante

15 de Dezembro de 2019 às 00:01

O jubileu do gigante Crédito da foto: Ina Fassbender / AFP

Leandro Karnal

Beethoven nasceu a 17 de dezembro de 1770, em Bonn (Alemanha). Isso significa que, a partir de agora, iniciamos um ano para lembrar a data que celebrará em 2020: os 250 anos do gênio musical. O ano que vem está tomado, em todos os lugares do mundo que pensa em música, pelo evento do compositor que marcou para sempre nossa forma de ouvir.

Quem gosta de música erudita não precisa de explicações. Ludwig van Beethoven é um monumento insuperável que marcou a transição do Classicismo para o Romantismo. Para o grande público, fica sempre uma pergunta válida: qual a importância dele? Nenhuma indagação é “herética” se representar um desejo genuíno de conhecimento. Afinal, é justa a fama? A obra é fundamental ou isso foi inventado por meia dúzia de especialistas afetados? Fiz o texto pensando nessa pessoa, que nutre a dúvida porque quer conhecer mais.

A geração anterior ao celebrado era a de Haydn e de Mozart. Uma questão não pequena: os dois músicos foram empregados de nobres e eclesiásticos. A folha de pagamento do arcebispo de Salzburgo ou dos nobres da família Esterházy listava cozinheiros, copeiros, lacaios, faxineiras e... Mozart ou Haydn. Não era apenas uma formalidade contábil; Mozart era considerado empregado do arcebispo com função de compor música de fundo para seus jantares. Trabalhar para a Igreja ou para uma casa nobre era a solução possível de sobrevivência de quase todos eles. O grande Bach foi de cidade em cidade lutando para ser organista e mestre-capela. Quem ajudou a mudar o cenário foi Beethoven.

Há uma mudança mais geral no século 19: surgia um mercado de música.

Partituras passam a ser vendidas. Ao longo dos anos seguintes, muitos músicos continuariam buscando patrocinadores nobres ou burgueses, mas agora há o músico livre, compositor, concertista, capaz de se sustentar (e, por vezes, com muito sucesso) com seu trabalho e sem seguir um programa determinado por alguém que contratava. Foi uma revolução, em muitos sentidos. As melodias de Beethoven cativavam muitos corações. Jovens pianistas desejavam executar suas peças, que iam das mais fáceis às muito complexas.

O nosso alemão de Bonn ajudou em outra mudança. Um clássico concerto em 1800 era dominado pela música feita para aquela ocasião, geralmente estreias. Pouco ou nada se executava de músicos do passado. No fim do século 19, a maioria dos concertos era de música consagrada de grandes mestres. Quem ajudou a dar esse passo foi Beethoven, pois produziu uma obra impossível de se ignorar. A Sinfonia Heroica (3) ou a Quinta foram absorvidas para sempre por quase todas as orquestras. O Ode à Alegria da Nona Sinfonia é o hino da Europa. Uma ou várias das 32 sonatas fazem parte da formação de todo pianista. Os quartetos são monumentais. Pour Elise habita o imaginário musical do mundo, talvez até demais. O que Beethoven fez foi construir um repertório que não poderia ser ignorado. Ele não foi o único, mas colaborou muito para construir uma base que passou a ser executada constantemente. Quando Disney filmou o desenho “Fantasia”, soube que teria de incluir uma obra do mestre e o fez com a Pastoral (Sexta Sinfonia).

Beethoven é um visionário. As soluções que ele encontrou na sua Grande Fuga, nos quartetos finais ou na sonata 32 para piano são tão densas e desafiadoras que inauguram uma nova maneira de pensar os sons. Os concertos para Piano e Orquestra vivem duas fases: antes e depois do número 5, O Imperador.

Dura tempo excessivo a pouca atenção com a única ópera do gênio: Fidélio. Faz tempo que existe uma redescoberta da obra, com suas propostas. Menos “fáceis” do que a ópera de Verdi ou menos teatrais do que a de Wagner.

Todos sabem, mas não custa lembrar: Beethoven compôs quase todas as suas obras-primas completamente surdo. A doença progrediu e tornou o gênio do mestre ainda mais complicado. O velho Ludwig era quase intratável.

A Osesp celebrará o ano com extensa programação “Beethoven 250”. As sinfonias, os concertos para piano, os últimos quartetos, a integral das sonatas para piano e a magistral Missa Solemnis, ao lado de chances raras como o oratório Cristo no Monte das Oliveiras. Arthur Nestrovski e Marcelo Lopes continuam lutando para manter a Osesp e a Sala São Paulo como referência nacional e internacional. Em épocas de secura cultural e de pouco financiamento ao que ainda existe, o gesto é quase um milagre.

Quer que as crianças comecem a percorrer o mundo para Beethoven? Experimente a leitura da série “Crianças famosas: Beethoven” (Ann Rachlin e Susan Hellard, ed. Callis). Deseja um excelente livro para a data? A Contexto lançou “Beethoven: As muitas faces de um gênio”, de João Maurício Gallindo e Romain Rolland. O livro é excelente! Deseja aprofundar ainda mais? O compositor norte-americano Jan Swafford lançou, em 2014, o livro “Beethoven, angústia e triunfo” (no Brasil: editora Amarylis, 2017). São mais de mil páginas de informações.

Há dois filmes sobre o gênio de Bonn. Nenhum é fiel aos fatos, mas ambos são bonitos e ajudam a visualizar aspectos da vida do mestre: “O segredo de Beethoven” (Agnieszka Holland, 2006) que é uma fantasia sobre Beethoven ter regido sua última sinfonia com auxílio de uma mulher. Ed Harris incorpora a alma irascível do gênio alemão. Mais antigo é “Minha amada imortal” (Immortal Beloved, 1994, de Bernard Rose) sobre a identidade da paixão secreta do músico. Se quiser algo realmente bom, experimente o filme da BBC: “Eroica” (2003, Simon Cellan Jones).

O resto é ouvir discos e ver material em canais de música preparando a data. Seja feliz, seja Beethoven! Boa semana para todos nós.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.