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O homem que derrotou o inferno

25 de Maio de 2019 às 00:01

O Homem que derrotou o inferno Crédito da foto: Vanessa Tenor

Edgard Steffen

Em uma panela, aqueça o óleo e coloque bastante sal.

Quando estiver bem quente, coloque os içás...

Deixe fritar até a casca ficar dura e crocante.

(Receita de içá)

Parafraseio Vinícius. Vegetarianos e veganos me desculpem, mas proteína animal é fundamental. Tem que manter isso... no cardápio do dia a dia. Em minhas atividades profissionais de médico da roça, pediatra e coordenador de programas de saúde materno-infantil, sempre estive ligado aos problemas da nutrição de crianças. Tentei ser parte da solução.

Aquelas figuras absurdamente trágicas que você vê na propaganda dos “Médicos Sem Fronteira”, vivenciei dentro das estreitas fronteiras dos municípios onde trabalhei. Faziam parte da rotina dos postos de puericultura. Barrigudinhos, costelas à mostra, olhos brilhantes, cabelos secos e quebradiços, ossos do braço da grossura de lápis (esta última comparação, pincei-a do presidente-presidiário) os vi aos magotes na zona rural de Piedade, Tapiraí e Sorocaba. Sobreviviam apenas os mais fortes. Doenças banais realizavam seleção “natural” darwiniana. Difícil rotular natural o que é pura manifestação de impiedade.

Numa conferência do Congresso Brasileiro de Pediatria (1972), o executivo maior de multinacional produtora de alimentos para crianças abordou pesquisas realizadas em busca de proteína de alto valor biológico e baixo custo. A soja ainda não era agronegócio em nosso País. O custo de produção mais barato que o das proteínas de origem animal, porém não fazia parte do cardápio tupiniquim, e carecia de suplementação (cálcio e vitamina D). Farinha de peixe poderia ser opção, mas deteriorava-se com facilidade nas áreas de clima quente. Antes da Guerra do Yon Kippur o petróleo era muito barato. Tentaram sintetizar aminoácidos a partir do óleo bruto, sem resultado viável.

A urbanização da população brasileira, no último quarto do século 20, levou os neourbanizados a subempregos e habitações precárias em áreas desprovidas de saneamento básico. Efeito colateral: reduziu a prevalência dos casos graves de desnutrição. O bom resultado pode estar ligado ao melhor acesso à informação e à assistência médico-hospitalar.

No Brasil de hoje, grande produtor de soja e carnes, ficou sem efeito a velha frase “Quando o pobre come carne de frango, um dos dois está doente”. Caiu também o tabu de que a carne suína faz mal à saúde.

Ecologistas, em todo o mundo, estão preocupados com a necessidade de proteína animal versus preservação do meio ambiente. Em 2050 teremos 9 bilhões de bocas a alimentar. O planeta não suportaria aumentos na pecuária tradicional e nos megacultivos de soja. Há quem aposte em espaços reduzidos. Isso seria possível pela criação de insetos em larga escala. O cultivo de artrópodos requer muito menos água e espaço. O teor proteico seria bem maior que o encontrado num bife. Poderia substituir a soja da ração animal.

A entomofagia há muito é praticada na África e Ásia. Milhares de espécies (larvas de besouro, grilos, formigas, gafanhotos, escorpiões etc) são consumidas por alguns povos.

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Fazem-me lembrar “Papillon -- O homem que fugiu do inferno”, livro escrito por Henri Charrière (1960). O original francês foi best-seller por 21 semanas, vendendo 1,5 milhão de cópias; traduzido em 21 idiomas diferentes, gerou 239 edições. Em 1973 virou filme estrelado por Steve McQueen (Charrièrre) e Dustin Hoffmann (Dega). Auxiliado por Dega, Papillon consegue fugir da Ilha do Diabo (Guiana Francesa, 1931). Confinado à solitária, capturava baratas e outros insetos para resistir à desnutrição. Enriquecia a rala sopa que lhe serviam. As desumanidades relatadas no livro levaram o Governo Francês a desativar a Colônia Penal da Guiana. Posteriormente, anistiou o fugitivo.

Papillon derrotou o inferno. Ficou milionário. A entomofagia o ajudou.

Nota do autor -- A revista “Isto É” publicou artigo atribuindo a René Belbenoit a autoria do livro. Belbenoit entregou ao semianalfabeto Charrière os originais (em inglês) do livro “Papillon”. Charrière pagou para alguém traduzi-lo ao francês... e faturou fama e fortuna.

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul -- [email protected]