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O escravo da Enciclopédia

16 de Agosto de 2020 às 00:01

O escravo da Enciclopédia

Todos que fizeram o ensino médio sabem que a Enciclopédia foi um esforço dos iluministas para organizar o saber sob os parâmetros da crença otimista na ciência e na razão. Os nomes de Diderot e D’Alembert são citados em todos os livros didáticos como as mentes que conceberam e levaram adiante o ambicioso projeto.

A obra foi fundamental e chegou a ser proibida. Os volumes estão na base tanto da revolução intelectual do século 18 como da Revolução Francesa.

Seu rastro de sedução atingiu inconfidentes de Minas Gerais (como na famosa biblioteca do cônego Luís Vieira da Silva) ou pensadores do movimento de libertação das 13 colônias na América do Norte. Foram 17 volumes de texto e 11 volumes de desenhos/esquemas entre 1751 e 1772. Era uma coleção de saber universal e um manifesto cultural e político.

Vou falar de algo além dos livros didáticos. Louis de Jaucourt (1704-1780) ofereceu-se para escrever artigos para a Enciclopédia. Tinha um currículo impecável em ciências e era metódico.

Com renda garantida, nada pediu em troca, apenas o privilégio de fazer parte da obra. É possível ligar a Jaucourt 17 mil ou 18 mil dos 68 mil artigos da obra, perto de um quarto do total. Foi chamado de “o escravo da enciclopédia”.

Louis de Jaucourt é o clássico “segundo escalão”, o homem dos bastidores, o ativo produtor que não aparece nos créditos das produções grandiosas. Se fosse hoje, as câmeras e os microfones estariam sobre Diderot e D’Alembert.

Foi para Diderot o convite para visitar a Rússia de Catarina, a Grande. No Panteão de Paris, túmulo ilustre dos heróis franceses e pessoas dignas de nota, o escultor Alphonse Camille Terroir (1875-1955) fez, no início do século 20, o monumento a “Diderot e aos enciclopedistas”. Foi para D’Alembert que Condorcet (o crônico otimista da ciência) fez o lindo elogio fúnebre de 1783. Jaucourt, como todo escravo, não recebeu tantas homenagens.

Podemos pegar o elevador de serviço e descer mais um andar. Jaucourt foi tão produtivo porque contratou muitos secretários. Ele ia dando diretrizes. A equipe ia escrevendo e o erudito enviava para os organizadores da enciclopédia. Logo, o “escravo da enciclopédia” tinha, também, seus próprios “escravos”. O segundo escalão empregava um terceiro.

Bertold Brecht fez a pergunta fundamental: “César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?”.

A dúvida atinge toda obra humana. Guardamos um nome. Fotografamos uma celebridade e identificamos um autor em resultados que contiveram o esforço de muitos. Vale para César e para o Iluminismo. Continua um desafio para o churrasco familiar: a mulher arruma a casa, faz a salada de batatas, coloca a mesa, lava a louça, prepara a sobremesa, elabora os convites, compra a bebida, desenvolve o vinagrete e a farofa e todos saem satisfeitos do churrasco “que o pai fez”. Existiria uma espécie de “síndrome de Jaucourt” nas famílias?

Presidentes raramente escrevem seus discursos. Papas não redigem encíclicas. Grandes chefes de cozinha, por vezes, observam multidões picando, lavando, misturando e assando. Emitem opiniões, valiosas, claro. São como Diderot: possuem um papel de destaque. Como César, nunca parecem ter seu próprio cozinheiro. São vistos como líderes visionários e isolados.

Se conseguíssemos aprofundar a reflexão das muitas camadas de anonimato que todo empreendimento humano apresenta, veríamos mais colaboradores atrás de grandes empreendedores e muito coletivo opaco atrás de brilhantes nomes individuais. A acusação pode ir mais longe ainda.

No filme A Esposa (Björn Runge, 2017), a personagem interpretada de forma extraordinária por Glenn Close desempenha um papel maior do que os louros atribuídos ao escritor vivido por Jonathan Pryce. O filme me fez pensar sobre as muitas esposas, maridos, secretárias, picadores, assadores, cozinheiros, limpadores, redatores, apoiadores, amigos, revisores, etc. É um batalhão de linha B, C e D que, suspeito, produz mais e de forma mais decisiva do que a aclamada linha de frente.

Para alguns, trazer luz para a “equipe de apoio” é uma questão de justiça histórica, numérica até. Para pessoas como Brecht, trata-se de revelar uma questão social e perder foco no indivíduo. Concordo com ambos.

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Como historiador, amplio: o anonimato de muitos desvia a possibilidade de interpretação correta de dados e faz focar em elementos secundários. Em resumo, a biografia de Diderot não é suficiente para eu entender a Enciclopédia.

Restaurar todos Louis de Jaucourt é, também, resgatar a dona de casa, o secretário e o “sous-chef” de cozinha e parar de confiar em lideranças isoladas e pouco explicativas. Finalmente entenderemos a ideia de Aristóteles: “O homem é um animal político”.

Entenderíamos, também, mais sobre ação efetiva e menos sobre nossa obsessão de liderança. Pensaríamos com maior exatidão nas enciclopédias do cotidiano e menos em quem daria a entrevista no dia do lançamento. Ganharíamos em resultado coletivo e perderíamos em vaidades arranhadas. Boa semana para você e sua equipe.

Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado