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O dilema do porco-espinho

01 de Novembro de 2018 às 09:03

Ilustração: Vanessa Tenor

Lancei pela editora Planeta “O dilema do porco-espinho”. Por meses, ao longo do processo de escrever a obra, girei em torno do conceito de solidão, tema central do texto. A metáfora do título foi retirada do filósofo alemão Arthur Schopenhauer: porcos-espinhos, no inverno, sentem frio e buscam os da sua espécie para aquecimento mútuo. A proximidade traz calor e... espinhos. Incomodados, os animais se afastam e, voltam a sentir frio. O impulso de luta contra o frio do isolamento a dialogar com os atritos da proximidade é, metaforicamente, o exercício contraditório da nossa existência.

Muitas pessoas sentem um frio lancinante em um sábado à noite ou, pior, se necessitam passar uma festa como réveillon sem companhia. Outros tantos, querendo fugir da angústia do inverno solitário da existência, fazem concessões e se aproximam de quem esteja disponível na ocasião, sem um critério seletivo rigoroso. A solidão pode ser tão terrível que a impomos como pena em solitárias ou exílios. Inegável também que é condição da existência: nascemos sós e morreremos sozinhos.

No campo das relações pessoais, naturalmente, ninguém é ideal para mim, assim como eu não sou perfeito para outra pessoa. No convívio dos humanos espinhentos, mesclam-se alegrias e incômodos. Amizades, casamentos, relações de trabalho, namoros e parcerias em geral são uma permanente negociação respondendo se os espinhos alheios superam o frio. A resposta da tensa equação indica se irei a bodas de ouro ou ao advogado do divórcio.

O desespero por companhia pode levar um Van Gogh a projetar em Gauguin todas as expectativas de romper o anel de ferro do seu isolamento. As telas em torno do tema “quarto em Arles” gritam a angústia em cores geniais. O francês fugiu para o outro lado do mundo, o Taiti, talvez assustado com a intensidade do holandês. Van Gogh continuaria seu voo brilhante e solitário até o fim, tendo como única fonte de calor seu amado irmão Theo.

Alguns casais ficam anos em situações mornas ou francamente agressivas porque as espinhadas causam menos terror do que o frio. Na balança que pesa frio e dor, é complexo encontrar a paz. Mais refinado ainda é perceber que as agulhadas podem fazer parte da zona de conforto que, bizarramente, a violência homeopática caseira consegue despertar. Parece que temos uma imensa capacidade de suportar a erosão cotidiana.

Claro que a solidão pode ser produtiva e até agradável. Usamos o termo solitude para mostrar uma face criativa e tranquila de estar sozinho. “Não é bom que o homem esteja só”, afirma Deus no Gênesis. A partir do primeiro casal e da primeira família instaura-se o tema em Adão e, igualmente, cria-se a desobediência e o homicídio dentro da primeira família. Curioso, como eu digo no livro, que Adão não tenha registrado queixas sobre estar sozinho. Quando Deus faz o primeiro recall da História e produz Eva, a percepção do isolamento é divina, não humana. A criação de Eva é uma lição: para fugir à solidão é necessário que minha interlocutora/interlocutor seja suficientemente igual para formatar o convívio (um ser humano como eu) e suficientemente diferente para que a relação não seja como um espelho apenas (ser mulher). Parece um segredo bem além da percepção apenas de gênero. Claro que dois homens e duas mulheres podem descobrir a fórmula do equilíbrio entre proximidade e distância. Quem eu escolho para borrifar a água da companhia no meu deserto interior deve ser parecido/parecida comigo o suficiente para que exista base para o diálogo e distante o quanto baste para não ser um xifópago.

Reconheça querida leitora e estimado leitor: você está casada/o há anos. Sua relação é boa e não existem queixas estruturais. Vocês planejam envelhecer juntos com um projeto amoroso que pode envolver filhos. Sua casa é seu refúgio e existe um sentimento forte de que o sim dado no casamento seria repetido hoje. Porém, contudo e não obstante, nesse quadro idílico há uma discreta contradição. Se sua cara-metade anuncia que precisa ficar fora alguns dias a trabalho ou por alguma questão familiar, um sentimento de alegria envolve toda pessoa que tenha um mínimo de honestidade consigo. Você sentirá saudade? Sim. Você ama? Muito. Você adorará o isolamento passageiro? Com certeza. Por alguns dias você estará livre para organizar seu tempo, sem concessões. Nada implica um grama de desafeto, apenas de uma necessidade humana para, de quando em vez, respirar em silêncio e ouvir sua voz de forma clara e sem barreiras. Isso é nossa contradição de porcos espinhentos, de humanos gregários e isolacionistas, de eremitas que buscam companhia sem abrir mão da sua caverna. Defendo no livro que a capacidade de encarar momentos solitários é uma mostra de sabedoria, equilíbrio interno e, no fundo, capacidade de encarar o exercício complexo de sair de si para ir ao encontro das outras pessoas. Para encerrar, muito importante: nunca confunda solidão com estar sozinho ou acompanhado. Solidão a dois pode ser a forma mais cruel de isolamento humano. Igualmente, ausência de outras pessoas não implica sofrimento. Consciência dos seus espinhos e do seu frio ajuda bastante. É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é jornalista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul

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