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O destino ao nascer

31 de Janeiro de 2019 às 09:05

Ilustração: Vanessa Tenor

Li o livro de Lázaro Ramos há quase dois anos: “Na minha pele” (ed. Objetiva). Com razão, a obra figura entre as mais vendidas do Brasil. Bem escrito e com uma história pungente, a narrativa biográfica prende do início ao fim. Comentei com ele a dúvida que tive ao final da leitura. Lázaro nasceu pobre na ilha do Paty, na Baía de Todos os Santos. O pedaço de terra isolado do continente era destituído de eletricidade e as memórias giram em torno das quatro famílias, seus roçados, de dona Célia e seu Ivan, pais do artista. Apesar de Lázaro ter descrito passo a passo suas origens, sua luta em Salvador e, depois, em outras cidades, ficou a dúvida: “Afinal, se você nasceu pobre e negro, ser hoje um dos mais respeitados atores do País é sinal de que o esforço é o caminho e quem deseja pode vencer? O caminho estaria aberto?”. A pergunta é vasta e a resposta complexa. Lázaro Ramos seria a prova de que o Liberalismo Clássico e sua ênfase na meritocracia estariam corretos? Cheguei a sugerir a ele que fizéssemos um livro sobre o tema. O próprio autor tem cuidado ao falar da sua trajetória, evitando dizer que o filho da cozinheira abriu um caminho acessível a qualquer um, bastando trabalho duro. Seria a brilhante exceção do marido de Taís Araújo a prova de que não é possível para todos?

Na contramão do Liberalismo, grande parte do pensamento de esquerda fala de caminhos interditados para a maioria, especialmente negros e negras pobres. Só com o auxílio de políticas públicas (cotas, por exemplo) poderíamos eliminar o fosso intransponível que marca nossa desigualdade econômica.

Lembro-me de uma piada de internet com toque mais à esquerda e menos meritocrática. O patrão apresenta aos funcionários um novo e reluzente carro importado. Diante da admiração dos subordinados, comenta que, se eles se esforçarem muito, se trabalharem duro, se atingirem metas e dobrarem metas, se perseguirem o estipulado como cenoura dourada a açular o esforço, no ano seguinte, ele, patrão... terá outro carro. Com esse final, a piada é de esquerda. Se terminasse dizendo que, se você se esforçar muito e buscar sua alma empreendedora, você terá um igual, daríamos uma guinada em direção a outro pensamento, mais ao estilo do livro/filme “À procura da felicidade” (2006, dir. Gabriele Muccino, com Will Smith no papel principal). Piadas e filmes, como tudo, são ideológicos.

Todo o debate gira em torno disso. É possível o sucesso apenas com o preço do esforço? Vamos ampliar o tema. Terminei o texto de Djamila Ribeiro: “Quem tem medo do Feminismo Negro?” (Cia. das Letras). Ela trata a questão de forma muito direta. O mundo brasileiro é racista ao extremo e, com as mulheres negras é duplamente cruel. As portas estão fechadas e somente o “marco civilizatório” (expressão do livro) do feminismo negro poderia resgatar pessoas da prisão pétrea das estruturas sociais vigentes. Djamila analisa os modelos estéticos dominantes, as ausências de negros, a tolerância passiva com o racismo declarado, a violência cotidiana e a constituição, segundo o conceito de Grada Kilomba, da mulher negra como o “outro do ‘outro‘, por ser ‘essa dupla antítese de branquitude e masculinidade’”.

Acredito no esforço. Acordo todos os dias às quatro da manhã. Trabalho aos sábados e domingos. Estudo e escrevo no meio de feriados. Fiz grandes sacrifícios pessoais para conseguir o que tenho. Porém, reconheci a outra amiga, Alexandra Baldeh Loras, que me considerava um “nascido salvo”. Qual o significado de estar salvo ao nascer? Com pai político, professor, advogado e, acima de tudo, branco, a minha maratona da vida começou com 20 quilômetros de vantagem sobre outros competidores. Aos 9 anos tive minha primeira lição de francês e latim com meu pai. Tive família estruturada e proteína abundante na infância, estímulos de viagens e biblioteca em casa. Eu me esforcei? Muito, demais, em níveis quase inimagináveis para a média das pessoas. Mas, reconheço, eu nasci salvo. Nunca um segurança me acompanhou em uma loja com olhar desconfiado. Meus olhos claros gritavam slogans em silêncio. Eu me esforcei e corri muito, mas minha maratona não começou onde as mulheres negras da periferia analisadas por Djamila Ribeiro deram a largada.

Mas volto à questão. Uma mulher negra como a autora, nascida em Santos, fez excelente faculdade, fala línguas, fez mestrado e escreve com maestria. O que a levou até “lá” que estaria vedado a outras em situação similar? Aqui apenas minha percepção do caminho para responder a essa questão: em vez de consultar seu grupo de WhatsApp sobre feminismo negro, leia o livro indicado e forme sua própria opinião. Saia da zona de conforto, ignore o senso comum que permeia nossas conversas e dialogue com uma voz que, bem provavelmente, não está no seu grupo.

Permita-se pensar, mesmo que você não venha a mudar de ideia. As respostas são muito complexas e ajudam muito a buscar novas lentes. Lendo e conversando com Djamila, eu mudei muitos conceitos. As perguntas complexas são: quanto podemos mudar a partir do ponto de partida do meio de nascimento? A meritocracia é um bom princípio ou um disfarce ideológico para mascarar um jogo de cartas marcadas? Como funciona o racismo no Brasil? O que mudou entre Lima Barreto e Djamila? Permita-se pensar. Não tenho respostas para todas as questões. Tenho vontade de criar pontes de ideias e ações. É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.