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O cunhado

19 de Fevereiro de 2020 às 00:01

O cunhado Crédito da foto: John Macdougall / AFP

Leandro Karnal

Se fosse coisa boa, não começaria com essa sílaba! A frase havia começado como uma leve piada e virou quase um lema familiar. O alvo? Paulo Henrique, o cunhado que os irmãos da família Toledo odiavam em uníssono. Temos de retroceder para entender a briga.

No começo, a família era igual a todas na alegria, como previra Tolstoi. Eles receberam o namorado da doce Ana com educação e certa afetividade. Os primeiros meses de namoro ainda estavam encharcados de salamaleques: com licença, aceita mais um pedaço? Fique mais um pouco... A etiqueta é uma máscara confortável. Ana estava apaixonada. O gesso dos bons modos não resistiria a chuvas mais fortes.

O primeiro incômodo veio nas férias de verão. A casa da praia era boa, confortável, sem luxos, porém com dignidade. Os céus conspiraram. Choveu como se Deus tivesse se arrependido de nunca utilizar novamente o dilúvio como método corretivo. Ficaram trancados na casa-arca com animais (não um casal de cada, como no episódio de Noé, apenas três cachorros). Foram duas semanas sob uma monção impiedosa. Restava comer, jogar cartas, ver televisão e... conversar. Aí a primeira sílaba premonitória da palavra cunhado emergiu.

Os Toledos amavam-se e eram cordatos. Desavenças eram raras. Paulo Henrique, a seu turno, tinha o tom inquisitivo e voz veemente. Defendia suas posições com paixão. Levantava-se, por vezes, para enfatizar seu argumento com o punho no ar. O problema não era a opinião, todavia a maneira de esposá-la.

Avessos a brigas por temperamento, os fleumáticos familiares retrocediam e tentavam evitar a continuidade da conversa mais acre. Debalde! O silêncio era interpretado pelo namorado de Ana como vitória; os argumentos cresciam exponencialmente. Houve estranheza e cochichos... A mãe olhava para o pai e os irmãos se buscavam sob o aguaceiro persistente. Todos suspiravam por algum monte Ararat.

Naquela praia, estava desenhada a rota de colisão. Tudo foi piorando. A relação do cunhado com os horários, a divisão de despesas e de tarefas, as ideias políticas e religiosas (e a maneira de defendê-las... ah! Aquele punho no ar) foram encalhando a nau dos Toledos nos recifes do cunhado. Não era possível a harmonia com a presença dele.

O desafeto contagiou os que não tinham sangue Toledo. As namoradas dos irmãos, as tias, as visitas: todas assumiram o mesmo tom de condenação. O tema preferido, na ausência da irmã e da besta-fera, era, exatamente, a personagem odiosa. A união aumentou. Não eram mais os filhos do Dr. Luís Toledo, porém o grupo que odiava Paulo Henrique.

Modificou-se a geografia da mesa. Se as regras da civilidade recomendavam flores baixas no centro para facilitar a conversação fluida dos convivas, os natais familiares passaram a apresentar uma alta e cerrada flora. Sumiram as pequenas rosas e brotaram alongados gladíolos, helicônias robustas e tuias de talo grosso. No Natal de 2002, a cenografia defensiva pesou mais e pequenas bananeiras tropicais estavam no centro da ceia. De um lado acomodavam-se os que não toleravam mais sequer conversar com o indivíduo. Do outro a esposa, ele e os tipos mais diplomáticos. As flores separavam gregos e troianos, “nós” e “ele”. Tinha certo requinte aquela mata ciliar correndo ao meio e sendo o divisor de águas entre dois sistemas hidrográficos adversos, como se os rios Negro e o Solimões estivessem ali.

Um paralelepípedo teria percebido o enfrentamento. Paulo Henrique notou e, sem fazer concessões, continuou a praticar todas as micro e macroações que o tinham conduzido à cela solitária no coração daquela estirpe.

Houve jantares sem convite público. Omitia-se o cunhado. Predominou a Guerra Fria, com crises de mísseis, espionagem e propaganda; jamais a guerra aberta. Toda vez que ele se retirava do almoço de domingo, o tema único era o comportamento do ausente. Surgiu um grupo alternativo de WhatsApp sem ele. Fizeram memes do marido da Ana.

O fato a seguir foi muito desejado por todos, jamais enunciado fora do cérebro de cada um. Ana acabou se separando do detestado. Era, disse ao advogado, “incompatibilidade de gênios”. Colaborara a resistência familiar? Nunca saberemos. O divórcio foi assinado em 2014. Ana foi abraçada entre a solidariedade e a vontade de abrir um champanhe caro.

Nelson Rodrigues tinha lampejos de gênio ao analisar a vida familiar brasileira. Sem o cunhado, os atritos que tinham sido afogados na raiva uníssona puderam emergir. Não havia mais um herege que ressaltasse a fé unida dos ortodoxos. Os temas não giravam mais em torno dele. As dissensões saíram do solo onde se esconderam por anos, como um gêiser reprimido e sulfúreo.

Cada família é infeliz de um jeito distinto, voltando ao autor de Anna Karenina. As brigas ficaram mais altas à medida que as plantas do meio da mesa ficavam mais planas. Desapareceu o gladíolo, brotou a violeta e o enfrentamento cresceu. Olhando-se de forma estranha, os irmãos perceberam o inominável: sem Paulo Henrique a família ficara inviável. Foram debatidas diversas soluções e houve um acordo que satisfez ao grupo. O irmão mais velho falaria com o ex-cunhado e levaria o estranho convite: ao menos uma vez por mês, Paulo Henrique estaria no almoço dominical da ex-esposa. Sem plantas ao meio e sem meias-palavras. Ele aceitou. Todos os membros daquela casa, ao se despedirem do terrível cunhado, abraçavam-se de forma sincera. A família estava salva. O inimigo voltara ao seio do nosso ódio comum. Que todos tenham muita esperança nas suas famílias, e algum ponto de união.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.