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O contador de histórias e o poeta

07 de Novembro de 2020 às 00:01

Edgard Steffen

Se a alguém causa inda pena tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nesta boca que te beija!

(Versos Íntimos -- Augusto dos Anjos)

Há dois meses perdi meu colega amigo irmão João de Campos Aguiar Filho. Partilhávamos relacionamento em que podíamos concordar ou discordar e, sem despertar melindres, até brincar com nossos respectivos futuros. Longevos, numa concessão ao humor negro, disputávamos honra de pronunciar o elogio fúnebre durante as exéquias do outro. As restrições da Covid-19 me impediram de cumprir o combinado.

João escrevia bem. Publicou livro de contos¹ e, apesar da perda quase total da visão, trabalhava na elaboração de outra novela. Dotado de memória elefântica, era capaz de citar trechos das obras que curtia. Sabia de cor os principais poemas e sonetos de Augusto dos Anjos.

Em homenagem ao amigo noveleiro, reescrevo e reedito crônica já publicada no centenário da morte do poeta.

A próxima 4ª feira (12/11) marca o 106º aniversário do paraibano Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos. Você pode até não curtir sua poesia. Imortais da Academia Brasileira de Letras, como Ferreira Gullar, ou gente simples como meu amigo João Aguiar confessaram gostar. (Nenhuma intenção em rimar). O que não se pode é ignorar o mais ilustre paraibano do século 20, eleito em pesquisa popular que preteriu cidadãos como João Pessoa e Ariano Suassuna. Publicou apenas um livro -- “Eu”. Após sua morte, amigos o reeditaram com acréscimo de “outras poesias”. Virou campeão nacional de reedições, e várias editoras pretendem continuar a reeditá-lo.

Augusto dos Anjos (1884 - 1914) era filho de Alexandre Rodrigues dos Anjos e Córdula de Carvalho. O pai intelectual versado em latim, grego e ciências naturais era diferente dos rudes e iletrados senhores de engenho da Paraíba. Córdula, ou Siá Mocinha, era herdeira do Engenho Pau d’Arco. O pai do poeta foi preceptor dos filhos. Dava aulas ao ar livre, à sombra de um tamarineiro. Quando o letrado e engravatado Doutor Alexandre faleceu, o engenho foi vendido (1910), mas hipotecas haviam reduzido o valor da herança. Casado com Ester Fialho, Augusto usou seu quinhão da partilha para mudar-se ao Rio de Janeiro. Urubu parecia pousado em sua sorte. Tentou emprego público. Não conseguiu. Durante um ano, trocou várias vezes de endereço, em diferentes pensões. Inadimplência? O jeito foi dar aulas de geografia. Em 1912, auxiliado pelo irmão Odilon, publicou o “Eu”, numa edição de mil exemplares. Em 22 de julho de 1914, nomeado diretor do Grupo Escolar “Ribeiro Junqueira”, mudou-se para Leopoldina (MG). Parecia feliz. Mas o corvo continuou pousado em sua sorte. Por carta² (datada 27/11/1914) Ester relatou à sogra o sofrimento do marido.

Pneumonia caseosa -- própria da tuberculose -- abatera o vate. Um mês acamado, submetido a “compressas frias; banhos mornos, cataplasmas sinapizados; injeções intravenosas de electrargol; injeções hipodérmicas de óleo canforado, de cafeina, de esparteína; lavagens intestinais; laxativos e grande quantidade de poções e outros remédios internos... Augusto tinha tamanha fraqueza que tomou injeções de soro fisiológico com rum, e tão enérgico remédio não pode reanimá-lo”².

O magro e desventurado amigo, de magreza esquálida, faces reentrantes, olhos fundos, orelhas violáceas e testa descalvada -- conforme a descrição de Orris Soares -- faleceu às quatro da manhã. Foi sepultado em Leopoldina. Não se confirmou a premonição de “As Vozes da Morte” (1907)

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,

Tamarindo de minha desventura,

Tu, com o envelhecimento da nervura,

Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Órgãos e tecidos de Augusto não estavam velhos. Estavam minados pelo bacilo de Koch. O poeta tinha apenas trinta anos. O velho tamarindo, submetido a poda e revitalização adequados à sua importância, continua impávido projetando sombra na paraibana Cruz do Espírito Santo onde ficava o Engenho Pau d’Arco.

(1) Histórias e Novelas da Cidade e do Povo de Piratuba - 2012

(2) Carta de Ester Fialho à Sinhá Mocinha - Apud “Augusto Lupanar dos Anjos”

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul - e-mail: [email protected]