O apagar de um bom programa
Crédito da foto: Reprodução / Internet
Edgard Steffan
Pelo Manhattan Connection desfilaram presidentes, políticos, artistas, cientistas e personalidades. Durante 30 anos, Lucas Mendes coordenou equipe de alto gabarito -- menção especial para o insubstituível Paulo Francis -- apresentando atualidades jornalísticas, econômicas e culturais diretamente da “Corte” (como Francis apelidava a Big Apple). O encerramento, com direito a emoções explícitas, deu-se na semana do Thanksgiving 2020.
O Dia de Ação de Graças, última quinta-feira de novembro, só perde para o Natal como feriado religioso mais importante da América do Norte. Tradicionalmente é o dia em que famílias reúnem seus membros dispersos. Na refeição principal, enorme peru assado enche a mesa, os olhos e o apetite do grupo. Explica-se. Quando peregrinos do Mayflower e seus ideais de liberdade religiosa chegaram a Nova Plymouth, fizeram acordo com Massasoit, chefe da tribo. Os wampanoags deram aos colonos sementes de milho e os ensinaram a plantar. Também os treinaram na caça a perus selvagens. A primeira safra de milho foi muito boa e os peregrinos tornaram-se exímios caçadores de perus. A comunidade resolveu agradecer ao Eterno a boa colheita e convidou os nativos a participarem da festa. Perus foram o prato principal. Nasceu aí a tradição gastronômica.
No Brasil, temos o dia de Ação de Graças reservado no calendário oficial¹, mas não curtimos nem a reunião familiar nem o consumo dessa ave. Postergamos para o Natal.
A linha branca dos eletrodomésticos chegou à classe média brasileira na década 1950. Geladeiras, por importadas, eram privilégio de pouquíssima gente. As famílias compravam estritamente o que poderiam consumir nas duas principais refeições diárias; a sobra do almoço seria requentada ou virava sopa no jantar. O guarda-comida -- móvel desbancado pela popularização da geladeira -- tinha a parte superior guarnecida por tela metálica destinada a manter ventilação e proteção contra insetos. Aos domingos, para acompanhar a macarronada, frango “caipira” -- comprado vivo de algum fornecedor ou escolhido no galinheiro do quintal -- era a mistura mais assídua para enriquecer o almoço.
Nas festas de fim de ano, principalmente no almoço de Natal, a família, aumentada pela presença dos filhos casados e netos, requeria assado maior. Abria-se espaço para leitoas, cabritos e perus, também comprados vivos. Sacrificados no dia anterior, eram limpos e guardados em vinha-d’alhos para marinar e conservar. Talvez por ser menos gorduroso e de melhor digestibilidade, o peru ganhou a preferência nos rega-bofes natalinos. Na véspera do Natal, devidamente embebedado com boa dose de cachaça, o Meleagris gallopavo era sacrificado. Daí o dito popular de que “Só o peru morre na véspera”.
O ditado perdeu o sentido. Supermercados exibem perus embalados em papel multicolorido com a logomarca do frigorífico. Devidamente temperados, equipados com apito que avisa o ponto do assado, foram abatidos muito tempo antes a fim de possibilitar a distribuição e atender a demanda das festas de fim de ano.
Pena que o Thanksgiving não pegou, como “pegaram” as redes de fastfood, as colas, o halloween, o blackfriday e outros americanismos. Em todos os tempos, mas principalmente nos de crise, seria bom agradecer ao Eterno a chance de ser, como no conto de Mario Andrade², “famílias felizes, honestas, sem crimes, sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas”.
Em 2008, Lucas Mendes, sarcástico e irreverente, referiu-se ao Tanksgiving como o Dia do Peru. Caprichosamente o Manhattan Connection morreu às vésperas do Dia de Ação de Graças.
(¹) Lei 781, Governo Eurico Gaspar Dutra, 1949.
(²) O peru do Natal
Edgard Steffen é escritor e médico pediatra. E-mail: edgard,[email protected]