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O ano ruim

15 de Outubro de 2020 às 00:01

O ano ruim Crédito da foto: Reprodução / Internet

Leandro Karnal

Já vemos a reta final para encerrar o ano escolar. Ufa! Pandemia, crise política, desastres econômicos e clima negativo quase universal. Na semana do Dia do Professor, podemos pensar com um pouco mais de calma.

Na segunda semana de março, tivemos de nos reinventar. Criar aulas virtuais é enfrentar uma novidade para a qual nenhum curso de licenciatura treinou. Donos de escolas privadas viveram o atrito de não ter aulas concretas presenciais e ter ainda de gerenciar pagamentos e mensalidades. Os alunos da escola pública, muitas vezes, reclamaram de não ter o suporte básico para o novo modelo: internet de banda larga, bons computadores e auxílio dos pais (este último igualmente ausente entre os de escola privada). Teria sido o pior ano das nossas vidas pedagógicas?

Eu tenho dito que a quebra da sequência de conteúdo tem um certo peso. Não exatamente porque houve falha em determinado conceito, porém porque aprofundou muito desigualdades nos ritmos e densidade da aprendizagem. Em tempos normais, já existem alunos que estão num patamar de excelência no fim do ano ao passo em que outros ainda não dominaram o básico. Isso piorou em casa. É possível que o Pedro tenha retornado sem ter, de fato, aprendido o que seria uma célula procarionte. A Flávia voltou para a sala e nada sabe da regra de Cramer em Matemática. “O que marcou mesmo o New Deal de Roosevelt, Natanel?” Todos os conteúdos são sequenciais e muitos implicam conceitos prévios. Em uma visão de currículo arcada por conceitos objetivos, o ano de 2020 foi/está sendo ruim.

Vamos pensar mais longe. Eu não tive interrupções no meu ensino médio. As aulas ocorriam em ritmo regular e previsível. Uma dedicada professora explicou o Teorema de Laplace. Eu me lembro de achar até bonitos aqueles números alinhados. Em algum momento, imagino, devo ter conseguido um pouco de domínio sobre o tema.

Hoje, se me apresentarem um problema envolvendo o teorema, não saberei resolver. O conteúdo, muitas vezes, possui lógica para o próprio conteúdo e para nós, professores, que temos, na cabeça, o início e o fim do processo. Quase nunca funciona assim no cérebro do estudante jovem. Como meu aluno entenderá Sócrates se não estudou, antes, os sofistas? O que entenderá de Tomás de Aquino se não souber categorias aristotélicas? Sempre desconfiei que, se Aristóteles foi dado em março, quando o doutor dominicano entrar na pauta, em setembro, o estagirita será tão presente como a lembrança que o aluno possa ter da sua festa de um ano.

Conteúdo é importante. Cada conceito é um tijolo para construir um pensamento. Mas, hoje, mais do que nunca, quero que percamos o fetiche de reduzir escola a conteúdo. Por quê?

O tempo da transformação gira mais rápido do que em qualquer outra época. O que você domina hoje amanhã terá pouca validade. Existem áreas (como Medicina ou Informática) em que a mudança é notada em poucos meses, porém, todas as áreas estão sendo revolucionadas. Mudam os conceitos e, mais complexo, mudam os paradigmas que organizam e validam esses conceitos. Se a metáfora ajudar, vá lá: mude o tijolo, a disposição dele na parede, o conceito de muro, a beleza ou fealdade do reboco, a concepção arquitetônica da obra toda e a noção do que seria uma casa bonita e feliz. Assim, o ano de 2020 não foi o melhor ano para decorar tijolos. Algo foi perdido? Há dois sentidos no verbo decorar.

Quero enfatizar que, em meio a mudanças, percebe-se a capacidade de adaptação. Quem tem melhor chance no futuro é a capacidade de adaptação e a resiliência. Se eu fizer o recorte por esse ângulo, o ano que se encaminha para o fim pode ter sido extraordinário. Alunos se adaptando a aulas em casa; professores repensando aulas e pais tendo de acompanhar de perto o desafio da aula no quarto ou na sala. Para alguns de nós, mestres, foi uma mineração de fontes e do potencial na internet. Para alguns alunos, foi a conquista de que, podendo impor seu próprio ritmo, produziram mais. Para os pais, com certeza, o desafio de educar e participar efetivamente (que a escola sempre lhe disse ser necessário) cresceu de importância.

Houve um problema grave, mundial, perigoso e que ainda nos ronda Tivemos de adaptar, inventar, criar e repensar um sistema que estava marcado pela repetição. Todos saíram da sua famosa “zona de conforto”. De alguma forma, 2020 corre o risco de ser um ano decisivo na memória e na formação dos alunos. Infelizmente, quase todos nós só conseguimos avançar na crise.

Em relação ao mundo e suas demandas cada vez mais dinâmicas, preciso dizer: a escola está defasada. Sim, temos textos novos, recursos novos e profissionais de educação dedicadíssimos. Não está aqui a questão. O modelo em si deve ser repensado. Aulas 100% presenciais, conteúdos fixos, explicação oral, muita cópia, poucos desafios reais, avaliações escritas, memória ainda importante, pouco trabalho com o corpo e com a imagem e por aí vai: este era e é o quadro dominante que pode marcar uma escola mais e outra menos, mas atinge todas. Nem entro no tópico disciplina que nos ocupa tanto. Em resumo, excesso de coisas secundárias que nos distraem do central. Qual o novo caminho? Não tenho a menor ideia, apenas sei que a crise de 2020 desnudou nossos problemas. Assim, por incrível que pareça, o ano que está se encerrando foi um dos melhores para alunos, pais, professores e escolas. Finalmente, e em bloco, algumas coisas foram desveladas pela angústia extrema provocada pela pandemia. A dor deste ano pode ter sido a dor do parto de um novo mundo. É preciso ter esperança, e pensar na educação sempre.

Leandro Karnal é historiador e escritor.