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Norma culta, entre tapas e beijos

17 de Agosto de 2018 às 13:12

Desvendar os meandros de uma língua fascinante, mas pouco compreendida por uma parcela significativa da população. É com esse propósito que realizaremos, quinzenalmente, neste espaço, uma série de diálogos sobre a Língua Portuguesa, como forma de proporcionar uma prestação de serviço ao leitor sobre pontos duvidosos de algumas regras gramaticais que são objetos de questionamentos até mesmo por especialistas, além de promover uma reflexão sobre os possíveis rumos do nosso idioma, neste século, em que a realidade virtual, cada vez mais, sobrepõe à palavra impressa.

Nesta primeira conversa focaremos nossa atenção nos conflitos existentes entre norma padrão e linguagem coloquial brasileira. É notório que há uma linha de tensão entre a língua falada e a escrita. Tanto isso é verdade que é comum dizer que há dois idiomas em curso, um ensinado nas escolas, pautado na norma culta, cobrado nos concursos e vestibulares, e a linguagem coloquial, muito presente no cotidiano da sociedade. Se a língua oficial é rígida, o discurso coloquial, refutado no ato da escrita formal, passa longe do rigor das regras. E, por ser espontâneo, torna-se mais expressivo no ato da comunicação diária.

No entanto, no que se refere à definição de um modelo ideal de língua à sociedade, as paixões tornam-se acirradas e sobram exageros tanto para os que defendem a gramática quanto para os que ignoram os formalismos do idioma. Assim, há quem afirme, sem titubear, que nosso rico patrimônio linguístico é permeado por normas obscuras que, de certo modo, mais complicam do que facilitam a vida de quem precisa se comunicar, não só para progredir profissionalmente, mas sobreviver numa metrópole, em que a simples identificação da linha de ônibus torna-se uma odisseia.

Por outro, muitos puristas condenam a ideia de, que pelo simples fato de algumas pessoas utilizarem a língua, cotidianamente, nos mais variados contextos, completamente desconectados das estruturas rígidas da norma culta, garante uma convicção, ainda que equivocada, de que dispõe do pleno domínio do vernáculo, porque conseguem se expressar da maneira mais espontânea possível.

Inclusive, no entender de alguns pesquisadores, a falta de domínio de certas regras gramaticais, consideradas confusas até pelos universitários, sedimenta a predominância do discurso coloquial, presente até nos meios de comunicação. Essa variante linguística, ao mesmo tempo em que confere um ar de espontaneidade à linguagem diária, lamentavelmente, funciona como fator de desprezo pela língua culta, mecanismo que só agrava o processo de apropriação de estruturas mais complexas de construção de frases ou a falta de domínio da conjugação correta de alguns verbos irregulares.

Aliás, no quesito paradigma verbal, dá-se um desconto ao povo, porque há certos verbos que até mesmo muitos professores desconhecem ou sequer sabem, na ponta da língua, como são conjugados. Um bom exemplo disso é o verbo "reaver", cuja conjunção é algo risível: "eu reouve meus documentos em uma semana". "Ele reouve seus documentos em uma semana." "Eles reouveram seus documentos em uma semana."

Todavia, é bom salientar que, frequentemente, vemos formas conjugadas erradas desse verbo, como: "reavi", "reaveu", "reavê", "reavesse". Ou ainda o não menos engraçado verbo, "aguar", conjugado da seguinte forma: eu águo, tu águas, ele, água, nós aguamos, vós aguais, eles águam. Na mesma linha, temos ainda o verbo "polir" que, conjugado na primeira pessoa do singular, temos: "eu pulo meu carro todas as semanas", algo que gera muita estranheza em que não está acostumado às particularidades da língua.

Claro que isso não serve de desculpas para ignorar a erudição linguística, principalmente para quem o idioma é a principal ferramenta de trabalho, no caso em questão os professores de Português. Mesmo que isso soe como mero pedantismo de uma persistente gramática que, a cada nova geração, aparta-se da juventude.

Ademais, existe uma queixa gritante no âmbito do ensino formal da língua que não pode ser desprezada. A reclamação recai sobre os excessos da gramática normativa. Para muitos docentes, isso tumultua o entendimento da língua entre os brasileirinhos que estão começando a ter um contato mais formal com um idioma que, desde os tempos de Camões, permanece, de certo modo, imutável em muitos aspectos.

A fim de encontrar um bode expiatório que justifique os descaminhos entre linguagem erudita e a fala do povo, também sobram críticas ao método do ensino do idioma que, para os defensores de reformas, é algo retrógrado, num claro ataque aos professores da área. No fundo, essas insatisfações, na maioria das vezes, atingem o alvo errado, porque não são os mestres que elaboram o material didático utilizado em sala de aula. As apostilas chegam prontas e muitas não são atualizadas, há décadas. Com isso, apresentam um gosto de café requentado. Como se diz, no meio pedagógico, a escola oferece "mais do mesmo".

Isso sem falar numa outra característica que, frequentemente, torna-se objeto de polêmicas: uma mesma palavra, em decorrência da norma vigente, muitas vezes, recebe vários nomes para designar a mesma coisa. Exemplificando: o vocábulo "ontem", dentro das classes gramaticais, é classificado como advérbio de tempo. No entanto, caso esse termo apareça na oração: "Ontem, fomos ao cinema", o mesmo será identificado sintaticamente como adjunto adverbial de tempo. Isso sem levar em conta a sutil semelhança que existe entre o adjunto adverbial e o adjunto adnominal, que são termos acessórios da oração (ou seja, podem ser excluídos do contexto), e o complemento nominal que não pode ser removido da frase, em hipótese, alguma sob pena de comprometer o entendimento da mensagem.

Esse é um dos muitos nós que se tornam uma verdadeira tortura para nossos estudantes, desde o fundamental I até o ensino médio. Inclusive, os pedagogos acreditam que o baixo desempenho em Português, no PISA, é fruto da falta de apropriação adequada da língua culta, por parte dos nossos jovens.

No conjunto das polêmicas que envolvem o ensino do idioma, há, também, a presença de discurso de viés claramente ideológico, para quem a norma padrão, no fundo, não passa de algo que procura perpetuar a "norma do patrão". Ou seja, o que se ensina nas escolas, em termos de falar e escrever, corretamente, modelo aceito pela elite cultural, ao longo da História, não passa de uma estrutura fechada que visa sustentar a "língua" de quem está no poder. No fundo, isso não passa de uma visão simplista que não contribui para o aprimoramento do ensino de nossa língua nem garante acesso à cidadania.

Além disso, a questão torna-se mais delicada porque, em termos Português, quase todo mundo tem uma regrinha pronta para justificar um eventual erro gramatical. Ou seja, uma regra fora da regra para justificar o desvio da regra. Algo realmente bizarro que expressa uma sutil resistência de quem precisa ou necessita entender, sem medo, a grandeza de nosso idioma.

Em síntese, apesar de todos os problemas e armadilhas que o ensino do idioma apresenta e a dificuldade que muitos enfrentam em entender os mecanismos da norma culta, não podemos desprezar a grandeza de uma língua fascinante, mesmo que essa relação seja entre tapas e beijos.

João Alvarenga é professor de Língua Portuguesa, mestre em Comunicação e Cultura e apresenta, com Alessandra Santos, o programa Nossa Língua sem Segredos, que vai ao ar pela Cruzeiro FM (92,3 MHz), sempre às segundas-feiras, das 22h às 24h.