Música sob as Oliveiras
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Leandro Karnal
Toda a minha alma estremece, diz Jesus nos versos de Franz Huber. A cena é impactante: sabendo próxima sua paixão, o mestre sobe ao Monte das Oliveiras. Olha para Jerusalém e para o seu destino. Chora, verte sangue, agoniza e se sente abandonado até pelos discípulos que dormem. Solidão e agonia extrema: sempre imaginei aquela noite fria de primavera como um momento-chave para entender a dor do mundo.
Os versos de Huber foram musicados por Beethoven em poucas semanas, por volta de 1802. O mestre revisou o oratório (Christus am Ölberge) na década seguinte. O momento também era de agonia para o alemão de Bonn. Vivia as primeiras etapas da surdez. Estava perto de fazer 32 anos. Escreveu uma carta aos irmãos chamada “Testamento de Heilligenstadt”. É um texto com algum desespero, indicações morais, crença na arte e vapores de morte. Fácil entender como a agonia de Jesus dialogava com a de Beethoven. “Tudo fiz para merecer um lugar entre os artistas e entre os homens de bem” (trecho da carta), combina com a frase “A minha alma está numa tristeza mortal; ficai aqui, e vigiai comigo” da narrativa dos evangelhos. Jesus é o tenor na obra. Há um serafim soprano e Pedro canta com voz de baixo. A música descreve até o tumulto da chegada dos soldados e termina com um aleluia belíssimo.
O momento da composição do gênio que faria, em dezembro próximo, 250 anos é paralelo a uma grande transição da sua obra. A terceira sinfonia trata do herói e é um passo decisivo para o romantismo. Como muitos sabem, foi dedicada originalmente a Napoleão. Depois, decepcionado com o sonho imperial do corso, Beethoven disse que seria para festejar a memória de um grande homem. Poderia ser Jesus, o próprio Beethoven ou todo radical solitário ao gosto da estética romântica. O segundo movimento da joia musical é uma Marcha Fúnebre. Foi usada em muitas ocasiões de luto, como o enterro de F. D. Roosevelt.
O oratório, composto um pouco antes da terceira sinfonia, mas já no período de retiro para tratar a surdez, traz uma figura de Cristo muito humana. Seu recitativo é um diálogo com a dor do abandono. Bach imaginou a cena, 80 anos antes, de forma teológica, enfatizando Cristo. Beethoven carregou nas cores de Jesus, o homem de 33 anos, quase a idade do autor. Imagino o luterano Johan Sebastian sentindo sua fé ao escrever a Paixão Segundo São Mateus. O mestre barroco se ajoelha em adoração. Ludwig, católico, abraça o homem desesperado olhando para Jerusalém. Ambos são gênios olhando para o fundador do Cristianismo. São duas vertentes tocantes de como a imaginação humana alça voo para o nono coro dos anjos ou para o abismo da dor.
O ano de 2020 teria sido de muita música de Beethoven. Cristo se angustiou porque sabia o futuro. Nós fomos pegos de surpresa pela pandemia porque não conseguimos pensar o minuto seguinte. Muitas áreas sofreram, porém a arte foi fulminada pelo raio da crise. Lutando pela manutenção da vida, quase todos se esqueceram das delicadezas da alma.
Os músicos sofreram muito neste ano. Já não é uma carreira fácil em dias comuns. Há algo da angina no horto: horas, meses, anos de sofrimento, suor e até sangue nos dedos ao apertar cordas. A técnica é um desafio, mas é muito mais fruto da insistência e da disciplina. Fazer seu coração vibrar em cada nota é o passo mais longo e complexo. Posso ensinar quase qualquer pessoa a tocar uma sonata. Trata-se de resiliência física. Pouquíssimos serão músicos profissionais.
A Osesp tinha preparado um programa histórico. Teríamos o oratório de Beethoven. Eu ouviria feliz, na sala São Paulo, o diálogo da orquestra com o coro. Hoje, pensando entre o dia em que ouvi o anúncio da programação e os sentimentos do ano atípico, existe a humanidade de toda agonia. Sofri como ouvinte apaixonado. Os músicos sofreram ainda mais.
Há alguns anos eu estava no Horto das Oliveiras. A vista é única. Estávamos em uma igreja ortodoxa e uma religiosa mal-humorada elevou a voz com uma aluna minha porque a roupa não cobria tudo da brasileira. Quem não tem alma costuma reparar muito no corpo. O corpo real sofre e agoniza, a alma, como quer o rabino Nilton Bonder, pode ser imoral. Talvez Jesus tenha sofrido também pela freira russa. Sofreu pela epidemia e pelo descaso com a música. Sofreu pelos artistas que dedicaram sua vida a aprimorar a arte e, agora, olham sonhos e projetos despedaçados. Há vários motivos para suar sangue e chorar. Beethoven encontrou o seu e se permitiu seguir o desamparo do Nazareno. A música nos guia e depois nos redime com um Aleluia.
Desejo que a boa música sobreviva a este prolongado deserto cultural. Sem músicos o mundo fica insuportavelmente pequeno e medíocre. Sem Beethoven e sem a Osesp, a cidade de São Paulo vira uma zona devastada imersa em álcool gel. Resta a agonia, no Horto das Oliveiras ou na Cracolândia. Explode a dor e silencia a harmonia. Vida sem o profissionalismo dos músicos é Calvário sem manhã da ressurreição, silêncio apenas. Precisamos sobreviver a tudo. Precisamos diminuir nossa desigualdade social. Precisamos de saneamento básico e de educação. Precisamos acabar com o câncer do racismo. E precisamos de música para que tudo isso possa valer a pena.
Música, na dor, afasta o cálice. Sucesso sem melodias é um equívoco. A agonia passa e a felicidade se fixa no som. Um abraço a todos os músicos do mundo, em especial a minha amiga Olga Kopylova. Se vocês pudessem ver como eu os ouço, veriam que toda dor e alegria da minha existência foi guiada por música. Boa semana musical para todos!
Leandro Karnal é historiador e escritor.