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Milagre e responsabilidade

05 de Julho de 2020 às 00:01

Dom Julio Endi Akamine

Sabemos que Jesus realizou milagres, mas nem sempre entendemos por que ele os tenha realizado tão poucos e para tão poucas pessoas. Se tinha a autoridade de expulsar os demônios, por que não os derrotou de uma vez para sempre? Se curou alguns doentes, por que não curou a todos? Se Ele devolveu a saúde a alguns, por que não acaba de vez com esta pandemia? Se ele pode sanar todo tipo de doença, por que não impede que a gente contraia o coronavírus?

Essas perguntas nos ajudam a entender o sentido dos milagres de Jesus e, sobretudo, o da relação entre a ação de Deus e a nossa liberdade. Nesse sentido, gostaria de propor a meditação do milagre da multiplicação dos pães.

A compaixão de Jesus se revela na sua preocupação em dar de comer às pessoas que o seguem. A reação dos apóstolos, por outro lado, é a de evitar a responsabilidade: sugerem que mande as pessoas embora para procurarem elas mesmas comida. Jesus rejeita essa solução cômoda. De fato, Ele não aceita comportamentos do tipo: “não é minha responsabilidade”, “eu não tenho nada com isso”!

Se a lógica de Jesus não é a de evitar a responsabilidade, não é tampouco a de fazer milagres fáceis. De fato, no deserto, depois dos 40 dias de jejum, Jesus já tinha rejeitado o milagre de “transformar as pedras em pães” para satisfazer a sua própria fome.

A ordem de Jesus é esta: “Dai-lhe vós mesmos de comer”. Mas como? “Só temos cinco pães e dois peixes”. Para uma multidão de mais ou menos cinco mil homens “cinco pães e dois peixes” é o mesmo que nada. Há uma desproporção brutal entre o tamanho da necessidade e os recursos disponíveis: com tão pouco é impossível saciar a fome de uma multidão de homens, mulheres e crianças.

Jesus, porém, pede que tragam os cinco pães e os dois peixes, ergue os olhos ao céu e pronuncia a bênção! Jesus bendiz o Pai pelos cinco pães e dois peixes! É pouco, é quase nada! Mesmo assim bendiz, agradecido. Não se lamenta. Não reclama. Não se queixa com Deus por lhe ter dado tão pouco.

Jesus bendiz o Pai no momento de extrema pobreza. Com efeito, é fácil agradecer a Deus quando temos tudo em abundância! Jesus demonstra que ama o Pai ao agradecer no momento da penúria: cinco pães e dois peixes para uma multidão de cinco mil homens! É exatamente essa gratidão e confiança no Pai que destravam a situação porque permitem que a generosidade do Pai se manifeste.

Jesus partiu o pão, deu-o aos discípulos, e os discípulos à multidão. E todos comeram e ficaram saciados. O pouco, sobre o qual pronunciou a bênção, é partilhado e produz abundância: sobram doze cestos cheios de pedaços!

Quando encontramos uma dificuldade, a primeira coisa a ser feita é abrir os olhos para o que temos à nossa disposição. Jesus pediu que os discípulos levassem o pouco que tinham. Agradeceu ao Pai pelos dons iniciais e os partilhou.

Também nós devemos começar com os dons iniciais, com alegria e gratidão, usando-os com amor. As reclamações e a amargura só servem para transformar as dificuldades em becos sem saída. Somente se somos agradecidos a Deus é que permitimos à sua generosidade entrar em ação. Ele nos ajuda de maneira imprevisível e realiza suas maravilhas a partir do pouco que temos.

Esse é o sentido do milagre! Não é o do milagre fácil que nos acomoda ou se substitui à nossa responsabilidade. É o do milagre de produzir a abundância a partir do nosso pouco partilhado. Importa partir o próprio pão: não é o pão dos outros que partilho com violência. É o meu pão que partilho com os outros.

Essa partilha dos próprios dons tende, por fim, a ser partilha de si mesmo. De fato, Jesus partilhou o próprio pão, mas não parou por aí. Se tivesse se limitado a isso, teria cumprido só um gesto de filantropia. Jesus partilhou a si mesmo, por isso, pode afirmar de si mesmo: “Eu sou o pão da vida”.

Neste tempo de pandemia, não peçamos milagres fáceis e inúteis. Mais do que nunca precisamos de milagres verdadeiros! Supliquemos o milagre de converter a corrida armamentista em competição pela saúde pública, o de globalizar a caridade, o de promover a justiça e paz entre os povos, o de transformar a nossa sociedade perdulária e superconsumista em solidária e fraterna.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.