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Lutar e crer para sobreviver

29 de Junho de 2019 às 00:01

Lutar e crer para sobreviver Crédito da foto: Arquivo JCS

Edgard Steffen

Alguns confiam em carros e outros em cavalos, mas nós confiamos no nome do Senhor (Salmo 20:7)

Na crônica sobre quíntuplos, usei a expressão “milagre de 800 gramas” para definir a sobrevivente de menor peso que passou por minhas mãos. Explico o porquê de haver escrito “milagre”.

Portadora de má formação uterina, após muito repouso, medicação e apoio de obstetra competente, deu à luz prematura. Pesava 1.200 gramas. Demorou um pouco para que a recém-nascida tivesse estabilizadas as funções vitais. Após algumas semanas, curva ponderal ascendente, pude dar-lhe alta.

Não havia passado um mês quando a trouxeram de volta. Estava com febre, falta de ar e deixara de ganhar peso. Na radiografia, terríveis bolhas nos campos pulmonares apontavam para o estafilococo, bactéria mais frequente nas infeções hospitalares à época. A partir daí, luta insana para manter viva a valente criaturinha.

Naquele domingo eu passara a noite no Hospital São Severino. Dispneia e febre haviam aumentado. Celulite necrotizante provocara enorme úlcera, desde a região lombar até a parte posterior das coxas. Tudo apontava para septicemia estafilocóccica. A Parca rondava o berço. Desenlace, questão de dias ou horas. Preparei os pais para o pior. Fechei o prognóstico.

Nesse estado de espírito voltei para casa. Não almocei nem consegui dormir para compensar a vigília. Na tentativa de relaxamento peguei uma revista recreativa destinada a médicos. Ao folheá-la tive a atenção despertada pelo artigo “No diagnóstico a ciência -- No prognóstico a arte”. O texto versava sobre prognósticos equivocados. Cardiologista alertara paciente a evitar esforços físicos. O coração fraco ameaçava parar a qualquer hora. Perigo de morte instantânea. Semanas após, o doente cardiopata foi um dos carregadores da urna funerária, levada morro acima com os 120 quilos do médico. Clínico jovem absolutamente abstêmio tentara convencer paciente a largar de fumar e beber, pelos riscos de câncer de pulmão e cirrose hepática. Pouco tempo depois, o médico abstêmio faleceu de cirrose hepática e câncer de pulmão. O paciente alcançou idade provecta gozando aparente saúde. Exemplos outros -- curiosos, galhofeiros ou insólitos -- demonstravam falibilidade médica na adivinhação ou profecia.

Por um capricho de paginação, no rodapé, nota informava futuro lançamento de novo antibiótico fabricado, no Brasil, pelo laboratório farmacêutico patrocinador da revista*. Seria comercializado assim que fossem cumpridos trâmites legais exigidos pela Legislação Sanitária. O artigo e o rodapé me instigaram. Pareciam encomenda. Voltei ao hospital onde o desolado pai ficara para assistir às últimas horas de sua filhinha. Chamei-o e contei sobre esse antibiótico que ainda não estava nas prateleiras das farmácias e hospitais. Poderia existir na sede da indústria farmacêutica importadora do produto. Por escrito, fiz um resumo do caso e entreguei-o ao jovem pai. Por radiocomunicação, em corrente de solidariedade, a empresa para qual trabalhava interveio junto à indústria farmacêutica e obteve ampolas do produto ainda não disponível no comércio.

Quarenta e oito horas após o uso do fármaco, a febre diminuíra e a pequerrucha começou aceitar melhor as mamadeiras. A falta de ar abrandou. Recomeçou a ganhar peso. Verdadeiro milagre! Três semanas após, pude dar-lhe alta. Muitas vezes revi a menina. Acompanhava a mãe nas consultas para seu irmão (nascido com tempo de gestação e peso normais). Adolescente, fiz sua preparação para cirurgia plástica reparadora. Dr. Ivo Pitangui corrigiu a enorme cicatriz consequente à celulite estafilocóccica.

O maior milagre não foi o da sobrevivência. Foi a mão invisível que me guiou à revista, ao alerta sobre prognósticos fechados e à nota de rodapé. Você pode chamar de coincidência ou atribuir a cura ao progresso da farmacologia. Parafraseio o 7º versículo do Salmo 20. Uns confiam em médicos e remédios; eu prefiro crer nos desígnios do Todo Poderoso.

(*) Revista editada pelo Lab. Lorenzini -- Anos 60

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul -- [email protected]