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Livro de História

02 de Agosto de 2020 às 00:01

Livro de História Crédito da foto: Divulgação / Pixabay

Leandro Karnal

Observo velhos livros didáticos de História. O papel tem cheiro forte. Algumas folhas estão soltas. Para o historiador, são joias extraordinárias. Reler o que era ensinado há anos é muito interessante. Como era a linguagem? Quais os fatos tratados e quais omitidos? A organização da memória é um manancial vivo. Vale para livros e para fotos da sua família.

Em 1936, a História da Civilização, de Joaquim Silva, estava na 14ª edição (Cia Editora Nacional). A capa anuncia que seguia o programa do Colégio Pedro II. As ilustrações são todas em preto e branco. O livro abre com o Egito, afirmando que, quando a “adiantada Europa” dos dias de hoje tinha selvagens morando em cavernas e choupanas, no nordeste da África já havia um povo civilizado. Naturalmente, a obra vai explicando o que é civilização: matemática, arquitetura, joias, astronomia, etc. O texto complementar que encerra o capítulo faz o tipo de afirmação que hoje causaria problemas: “A raça branca é preponderante na História”. O motivo? Ela gera as primeiras civilizações. No ano da confecção do livro, provavelmente, dominava a ideia de que os egípcios fossem brancos. Ainda que isso fosse verdade, ignorava-se que as civilizações do Vale do Indo e da China, não brancas, eram contemporâneas das pirâmides do antigo império dos faraós.

Para mostrar uma outra concepção de modelo histórico, pautado na Bíblia, invocam-se os filhos de Noé como produtores de correntes migratórias: Sem, Cam e Jafet. Sobre assírios, somos informados de que eram cruéis e... brancos. Os gregos e romanos, tal como acontece até hoje, recebem muito mais informações. Vamos para o império de Alexandre Magno e encontramos que “o Oriente foi perdendo sua feição asiática para se tornar helênico”. O capítulo 14 trata do choque entre Amílcar e Aníbal para falar das guerras Púnicas entre Roma e Cartago. Também há um capítulo sobre Catão, famoso censor do Lácio. Muitos capítulos seguem a indicação de um nome de líder: César, Augusto, etc. A História torna-se produto de alguns homens (brancos) iluminados e insignes. Na parte sobre Idade Média, os alunos são informados, de novo, que os árabes eram brancos, “da mesma raça que os hebreus”. Porém, os povos da península arábica eram “semibárbaros”; “civilizaram-se ao contato dos vencidos, especialmente com os gregos da Ásia”.

No capítulo 31, surge, enfim, uma mulher-chave de “ponto” (termo para uma parte da matéria a ser cobrada no exame oral): Joana d’Arc. Filipe II da Espanha é associado ao “fanatismo religioso” e Henrique IV da França, à tolerância. Herança liberal ou positivista? A descoberta das terras africanas (como se não houvesse alguém lá) é uma “série de heroicas aventuras, tendo aí, não raro, a geografia seus mártires: cientistas, exploradores, missionários, sacrificados pelos selvagens, ou pelas feras ou pelas moléstias”... O estudo de história é bem amplo, pois vai, em um ano, do Egito até a Revolução Russa, que, claro, recebe tintas totalmente negativas. Após 53 capítulos, seguem-se questionários, instrumento de fixação e de avaliação de História de então. Há também uma linha de tempo com datas e vocabulário. O texto tem boa escrita, cativante até.

O que falta? Pré-História, China, Índia, América Pré-Colombiana, África sem europeus, vida cotidiana, mulheres, etc. Não é uma acusação de lacuna, trata-se de constatação de mudança teórica e didática. Em parte, superamos o conceito de “civilização” como eixo definidor do programa e noções religiosas associadas à escrita da História. Também abandonamos a fixação no campo racial que, em geral, só aparece quando tratamos do racismo dos séculos 19 e 20. Os textos de então eram maiores, a avaliação baseada na identificação e descrição, não existia nenhuma discussão teórica ou conceitual.

Nem tudo é igual: Arrobas e Vidal (História da Civilização, primeiro ano ginasial. Melhoramentos, 1934) começa com um capítulo desenvolvendo o conceito de História (narração metódica e crítica) e termina também com a Revolução de 1917, que é classificada como a “única verdadeiramente social”.

Se avançarmos no tempo, veremos o popular livro de Edward McNall Burns (História da Civilização Ocidental - Do Homem das Cavernas Até a Bomba Atômica. Globo, 1949. 2 v). Ele continuou sendo publicado até há pouco tempo e era muito usado para pesquisas de trabalhos escolares na era pré-Google. Há um amplo capítulo sobre pré-História. Incluem-se, depois, hititas e egeus. Burns chega a analisar o conceito de civilização, com eco de velho debate entre Cultura (termo mais germânico) e Civilização (enfoque francês). Em dois volumes, a obra é mais densa em conteúdo do que as anteriores e era usada no que hoje chamamos Ensino Médio. Existem lampejos de história demográfica. O fechamento do volume um fala do progresso nas maternidades e seus efeitos sobre a população.

Toda maneira de ensinar história se apresenta como um documento de época, contém ideias sociais e econômicas dos autores e dos professores e serve a uma concepção política.

Nunca foram neutros. Os textos feitos há 80 anos eram, declaradamente, adeptos de uma visão de mundo e reforçavam papéis sociais. Bom domingo para nós!

Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.