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Liderança

17 de Novembro de 2019 às 00:01

Liderança Crédito da foto: Divulgação

Leandro Karnal

Meu amigo Pedro Salomão, otimista incurável, presenteou-me com o livro “Liderança heroica - As melhores práticas de uma companhia que há mais de 450 anos vem mudando o mundo”, de Chris Lowney (edições de Janeiro).

O autor é um ex-jesuíta que trabalhou como diretor na J.P Morgan & Co por muitos anos. O foco do livro: resgatar o modelo de liderança jesuítica para tentar traduzir os atributos desejáveis aos que exercem comando no mundo contemporâneo.

Uma empresa, a Companhia de Jesus, dura mais de quatro séculos e atinge o mundo todo. O “case” é fascinante. Poucos anos após sua fundação, ela está em lugares remotos da Ásia ou da América e já exerce enorme influência na educação europeia. Expansão gigantesca e originalidade na condução da liderança justificam a escolha.

A autoconsciência dos membros orientados a partir de rigorosa seleção e a prática dos exercícios espirituais e exames diários podem ser passos iniciais para explicar o sucesso dos jesuítas.

A confiança na autonomia de cada um dos inacianos, a capacidade inventiva de se adaptar a culturas locais e um compromisso com a excelência completam parte do quadro.

A ação de Inácio e suas escolhas, do sucessor Laínez, dos notáveis Matteo Ricci, Cristóvão Clávio, Francisco Xavier, Bento de Goes, Roberto de Nobili e Johann Adam Schall von Bell são, até hoje, impactantes.

Atravessar a Ásia por lugares até hoje desafiadores, aprender línguas locais e produzir boas obras na nova cultura, adaptar o Cristianismo ao mundo hindu, chinês ou japonês?

Tornar-se referência em astronomia ou matemática em toda a Europa? Sempre havia um jesuíta para personificar as questões anteriores.

O livro faz pensar de várias formas. Nunca tinha feito uma ligação entre as habilidades jesuíticas de adaptação cultural e a presença de cristãos-novos na ordem.

O geral Laínez, o ex-franciscano Henrique Henriques e, igualmente, nosso amado José de Anchieta: todos tinham ancestrais judeus e se destacaram na capacidade de adaptação cultural.

Seria herança de uma tradição de multiculturalismo e poliglotismo tão comuns à comunidade judaica?

Claro, o livro é de um defensor da ordem. A distinção entre um historiador profissional e um entusiasta de uma ideia é a modulação da narrativa.

Os jesuítas do livro funcionam como no filme “A Missão”: podem divergir entre si, mas sempre são épicos na dedicação e compromisso com os indígenas.

Lowney faz um contraponto entre o modelo de liderança maquiavélica e o da Companhia de Jesus. Talvez o abismo diminuísse levando em conta a participação jesuítica no tráfico negreiro, o enriquecimento extraordinário da ordem, as manipulações políticas obtidas com o papel de confessores de reis e tantas outras questões.

A Companhia é de Jesus, todavia os membros são humanos e, como toda instituição humana, reúne o traço insuperável que nos une como espécie: a contradição.

Sempre acho que a análise de “cases”, tema tão caro a interessados em liderança e administração, ganharia muito se analisássemos os grandes fracassos ao lado dos sucessos.

O movimento de pessoas e de instituições é muito mais um elaborado passo de dança com voltas, idas e vindas do que um reto e decidido marchar de tropas em linha reta.

A impressão de movimento progressivo contínuo é sempre dada pela narrativa. No século 18, 20% de todos os estudantes europeus estavam em instituições superiores guiadas pelos padres da Companhia. Como escreve o autor, os jesuítas tinham se tornado a “espinha dorsal” do ensino católico.

Extraordinário para a obra de um fundador que aprendeu a ler bem em latim já maduro e que não tinha colocado colégios como prioridade no ato de fundação.

O autor indica os riscos da expansão quase incontrolável de colégios, do fato que as novas gerações de professores se tornaram menos inovadoras por terem mais a perder à medida que o valor agregado dos colégios jesuíticos crescia.

Tudo está indicado no livro, sim, não obstante os riscos e danos da ousadia não estejam integrados de forma orgânica à própria ambição inicial do fundador. Todo império morre em função da sua dinâmica interna de expansão e o apogeu é imbricado na sua decadência.

Há inúmeras reflexões úteis e densas sobre o fenômeno daquele rarefeito grupo de estudantes em Paris ter tido o destaque histórico que a Companhia de Jesus obteve.

Há personagens de uma riqueza única que mereceriam filmes e análises. Ao lado das medidas revolucionárias de Inácio e de gerações de outros padres, caberia pesar com a mesma régua a não conversão massiva dos japoneses, indianos e de chineses, apesar dos esforços de adaptação cultural e das concessões imensas.

Os indígenas tutelados pela Companhia na América foram escravizados ou mortos. Dos notáveis colégios e universidades, emergiram intelectuais assombrosos e, igualmente, lideranças como Fidel Castro, Voltaire ou Bill Clinton.

Imaginar que todas as críticas tenham nascido exclusivamente da incapacidade do mundo em captar a excelência do projeto inaciano é, pelo menos, uma visão parcial. Todo líder do século 21 pode aprender com a excelência, heroísmo, autoconsciência e inventividade jesuítica.

Há muito para imitar no campo inaciano. Todo líder também deve pensar em fracasso, supressão, implosão do projeto e riscos da ousadia. Isso ajuda igualmente. Pensar modelos humanos é sempre uma fuga de polarizações. Boa semana para todos.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.