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Lares e quadros

04 de Maio de 2019 às 00:01

Lares e quadros Crédito da foto: Vanessa Tenor

Edgard Steffen

Em 2 de maio de 1519 morria, na França, Leonardo da Vinci

As comemorações prestadas ao autor da Monalisa suscitam-me reminiscências.

A casa onde passei a maior parte da minha infância -- bem no centro de Indaiatuba -- era muito simples. O terreno comprido abrigava duas habitações geminadas. A nossa e a farmácia do “Seu” Cordeiro. O sanitário era externo, tanto antes como depois da cidade receber água encanada.

No quintal, grama para clarear roupa, galinheiro, pequena horta, três mamoeiros, um pessegueiro salta-caroço e depósito de lenha. Cozinha equipada com móveis rústicos e fogão a lenha. Na parede, barra de tinta a óleo fazia o papel impermeabilizante facilitador da higienização.

Em todos os cômodos o chão de tijolos era rigorosamente varrido pela manhã. Às sextas-feiras lavado e esfregado até devolver transparente a água servida. Quem viveu esse tipo de limpeza, guarda na memória olfativa o aroma inesquecível de tijolo molhado. Cheiro de limpeza.

Apenas a parte frontal (que abrigava a agência dos Correios), a sala de visitas e o quarto do casal tinham forro. Na sala de jantar e no quarto principal, vestígios da fase áurea da família. Móveis grandes, entalhados, madeira escura. Escuras também as pedras de mármore, em contraste com o conjunto de louça branca usado nas abluções matinais. O mobiliário, importado da França, fora adquirido em segunda-mão a um cafeicultor.

Ainda não existiam prédios de apartamentos na cidade. Sobrados contavam-se nos dedos da mão. Ao lado de casas rentes às calçadas, começavam surgir bangalôs com jardim frontal e pequena área externa. Os melhores tinham piso de madeira encerada ou ladrilhos hidráulicos. Raras garages, raros os carros.

Os lares das famílias dos meus amigos também careciam de luxos. Na parede da sala de jantar, coloridas a mão, em moldura oval, retratos do casal genitor na época do casamento. Sobre os móveis, estátuas de santos. Num vidro com água e óleo, minúsculo pavio flutuante, aceso, indicava a preferência devocional da família. Nos quartos dos filhos reproduções de pinturas com anjo da guarda velando as crianças. Sobre os berços, devidamente emoldurados, os respectivos atestados de batismo.

Nos lares evangélicos, desprovidos de imagens, frequente “Os dois caminhos” -- quadro síntese da mensagem pietista e puritana do protestantismo da época. A gravura (60x80 cm, aproximadamente) parecia imensa nos cômodos pequenos e de pé-direito baixo. Mostrava o caminho largo que levava ao Inferno comparado ao caminho estreito que levava ao Paraíso. Menino, eu não gostava do quadro. Achava que o caminho estreito obrigava o cristão a ser triste.

Em nossa casa não havia essa figura. Nas paredes da sala de jantar, em molduras retangulares e fundo levemente amarelado, meus jovens pais -- Cristiano e Augusta -- retratados em preto e branco. Na sala de visitas, em contraste com os móveis de vime, almofadas coloridas e cortinas brancas. Três gravuras em tons escuros completavam a decoração. “Monalisa” de Leonardo Da Vinci, “Ângelus” e “As respigadeiras” de Jean-François Millet pintor francês precursor do realismo, retratista da vida rural no século 19. No “Angelus”, em campo arroteado, ao pôr do sol, casas e igreja vistas ao longe, casal curva as cabeças em atitude de prece. Ele de cabeça baixa, segura o chapéu, ela mãos ao peito em sinal de devoção. Em “As respingadeiras” -- costume inspirado no capítulo 19 do Levítico* -- no plano de fundo, celeiros e grandes montes de trigo recém-colhido; no primeiro plano, três mulheres colhem as espigas restantes da ceifa. Duas respigadoras, curvadas para o chão, apanham espigas que os ceifeiros deixaram para trás, e a terceira amarra o seu feixe.

Os quadros perderam-se no tempo e mudanças. Na memória de minhas retinas eles permanecem. Os velhos tempos passaram. Ainda bem que os curti. Saudades apenas das certezas da fé, esperança, estabilidade familiar e vida independente do conforto e consumo.

(*) Não colham todos os grãos nem as espigas caídas ao chão.

à deixem para os pobres e estrangeiros.( Levítico 19:9-10)

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul -- [email protected]