Homem-ave de rapina
José Feliciano
No filme “O abutre” de 2014, o ator Jake Gyllenhaal, interpreta Lou Bloom, um sujeito sem escrúpulos, que por acaso observa uma equipe gravar um acidente de rua e descobre que pode ganhar dinheiro vendendo matérias sensacionalistas e sangrentas para telejornais que disputam audiência.
Toda produção humana é feita para outros humanos ver. É balela acreditar no: “Eu não faço para ninguém, faço para mim”. Queremos impressionar outro humano. Ninguém compõe uma sinfonia ou o que for para apreciação de chimpanzés ou iguanas. Com o sensacionalismo não é diferente.
Notícias de mortes, a maioria trágicas como a barragem de Brumadinho, a tempestade no Rio de Janeiro, o incêndio no CT do Flamengo, notícias sobre morte de personalidades, algumas naturais -- Bibi Ferreira e Deise Cipriano, do Fat Family -- ou igualmente trágicas como o jornalista Ricardo Boechat, além das que se abatem sobre pessoas comuns, crianças caindo de prédios, todas têm vendido como pão quentinho.
Sob ameaça das redes sociais e mídia alternativa, céleres para informar ou desinformar(?), chama a atenção a tônica dos noticiários que, ao invés de se afastarem desses tais meios, delas se aproximaram na forma e conteúdo. É possível ver numa das fotos -- ou mesmo em vídeo -- do caminhão contra o qual o helicóptero que viajava o jornalista da TV Bandeirantes se chocou, uma mulher ajudando o motorista preso às ferragens, enquanto outras pessoas registram imagens do acidente para, quem sabe, compartilhar e ter os tais segundos de fama por um vídeo. Ao vivo, nenhum comentarista alertou para isso.
Claro que sempre foi assim, mas convenhamos tem piorado. Temos uma espécie de “novelotícia” ou “notícia dramatúrgica”, com predileção por desgraça -- dos outros, óbvio -- em capítulos diários ininterruptos. Às vezes, de modo insólito, os comerciais nos salvam. Ufa!
Há algum tempo uma repórter de TV entrevistava uma mulher em prantos cujo marido, motorista de táxi, acabara de ser assassinado a facadas por assaltantes. A repórter perguntou, ao vivo, à mulher: -- “Como a senhora se sente?” Foi quando me lembrei da MAD, revista americana de humor de 1950, distribuída no Brasil a partir de 1970, que tinha uma seção de: “Respostas imbecis para perguntas idiotas”. No caso acima, seria uma ótima chance para a viúva dar uma resposta merecida a uma pergunta imbecil. E está longe de ser um caso isolado.
Homens-aves de rapina estão surgindo no que alguns chamam de “comunicação de massa”, esquadrinham detalhes mórbidos, procuram quaisquer registros de imagens, vozes, vítimas ou cenas, exibindo-as com ou sem escrúpulos o que rotulam de: informação. E os telejornais e afins, incapazes de compreender o quanto estão sendo destruídos, não só pelas fake news, mas pelas más informações, vão se rendendo a esse baixo clero da notícia. E sem nem um “piu” de crítica.
Nesse vale tudo onde a “Desgraça é o show” o assunto não pode esmorecer ou perder audiência. Jamais! A ordem é a repetição. E se o interesse diminuir é hora de personalizar as vítimas, contá-las não basta, é dar-lhes nomes, idade, cor, sexo, religião e, se ainda não for suficiente, buscar particularidades: trabalhava assim; pretendia ser tal profissional; deixou estes filhos, aquela mãe; aqueles amigos, tinha um sonho de... Quando isto também começa a perder o interesse e acima de tudo audiência, parte-se para os culpados, estes nunca faltam e novamente as mesmas imagens retornam e aí os especialistas estreiam com suas previsões e análises pós facto! Como se a desgraça humana -- do outro -- fosse torcida como um pano úmido que se espreme até rasgar.
Nem mortos, nem familiares, nem nós, o público, somos deixados em paz para velar em respeitoso silêncio as vítimas. Repetem e repetem até causar náusea e repulsa em continuar “vendo isso”. E o que será que provoca em pais, mães, filhos de vítimas ver corpos como fardos içados, carregados, resgatados? Por dias e até semanas as mesmas imagens? Desumano. Notícia? E finalmente as promessas de providências e de que aquelas vítimas “jamais! serão esquecidas”, pelo menos, até o próximo evento inesquecível.
A imprensa, meios de comunicação, as tais mídias alternativas confundiram sofrimento com diversão, notícia com sensacionalismo. Posicionamento com exibicionismo. A humanização dos meios de comunicação está sumindo ou pior deixando a insensibilidade crescer sem questionar-se. E a esperada crítica dos profissionais por que anda sumida? Talvez por isso se lamente tanto quando um jornalista como Ricardo Boechat nos deixa.
“Adeus não! Me diga até breve.” (“Brilho de beleza” - Negro Tenga)
José Feliciano - Redator de humor e mistérios - Médico assombrado.