Filmes da Netflix: “Sniper americano”
Chris Kyle (Bradley Cooper), atirador de elite, era chamado de “A lenda” nos Estados Unidos. Crédito da foto: Divulgação
Nildo Benedetti - [email protected]
Este artigo e os das próximas semanas tratam de filmes de guerra.
Em certo momento, o “sniper” Chris Kyle, o protagonista do filme, afirma que não sente remorso pela morte a que levou mais de 160 iraquianos e diz que só matou os que queriam matar soldados americanos. E lamenta que tenha pedido dispensa, porque poderia continuar na guerra para salvar seus companheiros de farda.
Esse diálogo pode ser interpretado como uma crítica à guerra, porque evidencia as profundas transformações psicológicas provocadas por um conflito sangrento que levam o combatente a se tornar uma máquina de matar. Mas pode também significar o contrário: ainda que sofrendo por causa da guerra e prejudicando sua vida familiar, ele se solidariza com os companheiros e mostra-se firme em seu propósito de salvá-los, parecendo assim um verdadeiro e patriótico herói.
Penso que a segunda alternativa seja a que motivou Clint Eastwood a dirigir “O sniper americano” e que os dilemas existenciais do personagem são apenas formas de despertar no público a admiração pelo seu patriotismo. Eastwood tem virtudes técnicas indiscutíveis como cineasta. Mas é filiado ao Partido Republicano desde 1951 e defende uma ideologia um tanto difusa, algumas vezes liberal, muitas vezes de ultradireita. Em muitos filmes se apega ao confronto entre bem e mal de forma esquemática, sem mostrar qualquer dúvida sobre quem está certo e quem está errado. Em “Sinper americano” os iraquianos são selvagens, maus, merecem ser eliminados pelos americanos civilizados e, por isso, cada inimigo morto é motivo de festa. Embora filmado dez anos depois do início da guerra, Eastwood tenta defender uma invasão indefensável e dá estatuto de herói nacional a um matador. Age exatamente como o protagonista do filme: indivíduo talentoso agindo em favor de uma causa imoral.
Em uma guerra coexistem os interesses do invasor e valores por ele propagados. O que motivou a invasão do Iraque foram os interesses das empresas petrolíferas, da indústria bélica, das empresas de reconstrução do país arrasado etc. E os valores propagados para engabelar o público e levá-lo a aplaudir a guerra eram o da destruição de armas químicas -- que nunca foram encontradas --, o da ligação de Saddam Hussein com a Al-Qaeda, que nunca foi comprovada, e defender valores como democracia e liberdade (a campanha no Iraque chegou a ser chamada Iraq Freedom, ou seja, Liberdade do Iraque).
O historiador Noah Harari cita os trilhões de dólares gastos nos fiascos militares sofridos pelos norte-americanos no Afeganistão e no Iraque e que a dificuldade de levar a efeito guerras bem-sucedidas no século 21 faz que desfrutemos de um período de paz que nunca tivemos anteriormente; mas, ainda assim, a paz duradoura não está garantida, porque “não devemos jamais subestimar a estupidez humana”.
A insensatez da Guerra do Iraque levou centenas de milhares de pessoas à morte, à emigração em massa, à ascensão do Estado Islâmico, a uma guerra sangrenta na Síria e, por ironia, ao fortalecimento do Irã no Oriente Médio, porque o país usufruiu os espólios da guerra de seus inimigos, os Estados Unidos e o Iraque.
Então, por que realizar um filme que faz de herói um matador de pontaria certeira?
Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec