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Filmes da Netflix: ‘Pastoral americana’

10 de Julho de 2020 às 00:01

Filmes da Netflix: ‘Pastoral americana’ Os conflitos de Sueco (Ewan McGregor) e a filha Merry (Dakota Fanning) representam os conflitos sociais das décadas de 60 e 70. Crédito da foto: Divulgação

Nildo Benedetti - [email protected]

No início deste filme de 2016, dirigido e protagonizado pelo escocês Ewan McGregor, o narrador lembra que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos havia uma alegria de viver que nunca mais seria experimentada nos anos que se seguiram.

O filme utiliza a vida da família Levov como fonte de interpretação do momento histórico norte-americano que vai do pós-guerra (1945) à metade da década de 1990. Focaliza principalmente as décadas de 1960 e 70, marcadas por grandes convulsões sociais, desordem e caos: manifestações, especialmente de jovens, contra segregação racial e a guerra do Vietnã, assassinatos de ativistas afro-americanos, incluindo Martin Luther King Jr, assassinato de John Kennedy, assinatura do armistício com o Vietnã do Norte, o caso Watergate e muitos outros. Na Califórnia surgiram o movimento hippie, de ideologia pacifista e contra o consumismo, e os protestos estudantis que desembocariam no movimento de Maio de 68 em Paris; este se espalhou pelo mundo e levou à ruptura em várias instituições, incluindo a familiar: a função normativa da figura do pai e, como consequência, as relações na família nuclear tradicional foram alteradas.

O filme é baseado na novela homônima de 1997 do escritor norte-americano Philip Roth. A novela se insere em uma tradição literária que remonta à década de 1920 de crítica da sociedade norte-americana, em especial os chamados “American way of life” (estilo americano de vida) e o “Sonho Americano”, caracterizados por: direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade; a crença de que, por meio do trabalho, qualquer indivíduo pode prosperar economicamente; a ideia de igualdade política, social e racial.

O percurso de vida familiar de Sueco é figura da decadência do Sonho Americano. No início, uma família perfeita: pais brancos e bonitos, pai atlético e empreendedor, filha inteligente. Mas, no seu próprio seio, como na própria sociedade, o desmonte se dá a partir de dentro. Começa com a constatação da gagueira de Merry, passa pela acentuada rebeldia da adolescente. Ela não crê na sociedade industrial propulsora do progresso e do bem-estar e confronta os preceitos de ordem, beleza, limpeza, que Freud apontou como algumas características da civilização. Suas dúvidas e incertezas levam-na ao extremo da revolta social, quando mata quatro pessoas, até cair no jainismo, que prega rejeição da violência e a vitória sobre as paixões e os sentidos; ela não odeia o pai, mas o que ele representa. A relação de Sueco com a esposa também se deteriora. Ela lamenta tê-lo escolhido para marido, de ter sacrificado sua carreira por ele e resolve recomeçar fazendo plástica dispendiosa e arrumando um amante. A falta de competitividade da empresa de Sueco, que ele insiste em manter viva, marca a decadência do setor industrial da economia americana para países de mão de obra barata.

Todas as passagens do filme fazem sentido se Merry for entendida como figura da negação do Sonho Americano e Sueco for tomado como figura que aspira inutilmente salvá-lo. “Nossa velha vida já se foi, Sueco. Está morta”, como diz a esposa, palavras que valem também para o Sonho Americano.

Na próxima semana escreverei sobre “O irlandês”.