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Filmes da Netflix: ‘Pais e filhas’

05 de Junho de 2020 às 00:01

Filmes da Netflix: ‘Pais e filhas’ A menina Katie e o pai que é, ao mesmo tempo, mãe. Ao fundo, a melancólica Katie adulta. Crédito da foto: Divulgação

Nildo Benedetti - [email protected]

Segundo Sigmund Freud, as experiências vividas e os padrões formados na infância se repetem durante a vida. “Pais e filhas” possibilita pensar nessa tese freudiana.

Em sua obra “Luto e melancolia”, Freud definiu o luto como a reação à perda de um ente querido ou de alguma abstração como pátria, liberdade etc. Embora o objeto de amor continue a ser lembrado, os sintomas dolorosos do luto vão normalmente se dissipando com o tempo. Mas, em algumas pessoas o luto permanece sem finalização e passa para a melancolia. A melancolia é o sinal de que o luto não foi superado.

Os traços mentais da melancolia são: desânimo penoso, cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de atividade e diminuição de autoestima. São essas características que Katie aponta à psicanalista, quando diz que não consegue amar, que é um poço seco e estéril, que não é feliz nem bonita e insinua que o pai é o único a quem amou, há muito tempo.

Se a condição mental de Kate pode ser associada à melancolia, podemos estabelecer a relação entre seu comportamento adulto com a perda do pai na infância; é que farei a seguir.

A melancolia se origina no nível inconsciente, ao qual o indivíduo tem acesso restrito. Por isso, o melancólico apenas sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém.

Freud mostrou que as queixas do melancólico contra si próprio são, na verdade, inconscientemente dirigidas ao ser que foi perdido e que o faz sofrer. Portanto, quando Kate diz que não consegue amar, está, de fato, acusando o pai de não amá-la, porque a abandonou. Quando diz que quem vier amá-la se arrependerá, está falando dela própria, que sofreu com a morte do pai.

Cameron se parece com o pai, até fisicamente. É também escritor, não busca apenas uma aventura passageira. Katie valsa com ele como havia valsado com o pai (que havia dito que ela dançaria com seu príncipe). Ao ouvir a música executada no bar, “Close to you”, associa-a à mesma música que cantara com o pai na infância e identifica Cameron com o ele: por isso diz “sinto tanto a sua falta”, que vale para os dois. Ela quer se aproximar de Cameron porque seria como reaproximar-se do pai e, ao mesmo tempo, procura se afastar, porque não quer se decepcionar novamente. É o medo da aproximação que a impede de ir à festa na casa dos pais de Cameron. Pela mesma razão, tem a dolorosa aventura com o jovem do bilhar e, sempre inconscientemente, deixa a embalagem do preservativo no chão do quarto para se incriminar. Quando Cameron sai de casa, ela insiste que não sabe por que traiu: e ela não está mentindo.

Ao mesmo tempo que Katie se empenha na recuperação do trauma de Lucy pela perda da mãe, vai trabalhando sua perda do pai. Katie adulta não tem uma única amiga e Lucy ocupa esse vazio, fazendo-a agir como mãe. Quando pergunta a Lucy se tem raiva da mãe porque morreu, ela está, de fato, perguntando a si mesma sobre o próprio pai.

O filme é contado parcialmente em flashbacks por associações livres de cenas presentes com as do passado.

Penso que, a partir do pouco que escrevi acima, o leitor poderá interpretar tudo o que ocorre no filme.

Na próxima semana escreverei sobre “A livraria”.