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Filmes da Netflix: “La valija de Benavidez” - (Parte 3 de 3)

05 de Março de 2021 às 00:01

Filmes da Netflix: “La valija de Benavidez” - (Parte 3 de 3) Benavidez (Guillermo Pfening), vive um pesadelo em um filme instigador. Crédito da foto: Divulgação

Nildo Benedetti - [email protected]

Nos créditos do filme, uma animação mostra uma bola passando por um labirinto em movimento. Essa bola, veremos depois, representa o próprio Benavidez.

Das simbologias associadas ao labirinto, a que nos interessa é a apontada por Chevalier & Gheerbrant no “Dicionário de Símbolos”: uma espécie de santuário interior e escondido, no qual reside o mais misterioso da pessoa humana. É o interior do homem, o seu inconsciente ingovernável, que atua de modo independente da sua vontade consciente.

O filme pode ser visto como uma ficção científica. Um software alimentado por Corrales, com dados das sessões de terapia de Benavidez, cria ambientes e fatos significativos da vida pregressa do paciente. Suas reações são visualizadas e interpretadas e o que está reprimido no seu inconsciente e que o faz sofrer lhe é revelado pelo psiquiatra com ajuda do software. É uma psicoterapia com auxílio de inteligência artificial. Como toda ficção científica, a terapia de Corrales é a representação de como o presente mundo real poderá tornar-se no futuro.

O filme pode também ser a narrativa de um sonho de Benavidez que se iniciaria quando ele dorme na casa de Corrales ou possivelmente antes. Freud apontou que até mesmo o sonho que provoca desprazer é a realização disfarçada de um desejo inconsciente. A censura, que Roudinesco definiu como a Instância psíquica que proíbe que emerja na consciência um desejo de natureza inconsciente, é afrouxada no sonho. Esse desejo inconsciente, inadmissível pela consciência, aparece no sonho sob forma travestida. Portanto, tudo o que escrevi no parágrafo anterior continua valendo, porque o software utilizado por Corrales e o sonho vasculham o inconsciente de Benavidez. A aventura deste no labirinto é marcada por simbolismos, dramatizações, deslocamentos, que caracterizam a lógica do sonho.

Muito pode ser dito se o filme for visto como sonho de Benavidez e aqui vão alguns exemplos: encontra o vendedor de malas (referência à loja em que foi comprar a mala com a esposa), a cozinha em tom azul em que Lisa estraçalha uma ave, como ele foi estraçalhado simbolicamente por Lisa e como ele desejaria estraçalhá-la literalmente para pô-la numa mala. Encontra o pai, que considera o filho sem qualquer vocação artística (na cena, a mãe está na cozinha, como Lisa). Chega a uma espécie de exposição de pintura, em que alguns retratos sugerem que rompa as barreiras que impedem seu desenvolvimento como artista. Outras, como a esposa, que o acusam de ser um fracassado. Uma pintura repete o que lhe dissera Lisa, que o mercado financia qualquer imbecil. O sonho concluiria com Benavidez ovacionado, expressão o seu desejo de sucesso, e o assassinato como desejo recalcado pela morte de Lisa, sua competidora talentosa, a quem inveja e que vê como alguém que quer destruí-lo.

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A diretora Laura Casabé assim se referiu no jornal “Tiempo Argentino” a respeito de Benavidez: “Não tenho uma explicação racional para justificar o que ele faz. Pode ser por uma série de razões, incluindo que ele se sente desprezado ou deslocado‘.

É um consolo saber que não estamos sós nas dificuldades de dar um sentido a esse filme complexo e cativante.

Na próxima semana escreverei sobre “Relatos do mundo”.

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec