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Filmes da Netflix: ‘Estou pensando em acabar com tudo’

25 de Setembro de 2020 às 00:01

Filmes da Netflix: ‘Estou pensando em acabar com tudo’ Jake (Jesse Plemons) e “Uma jovem mulher” (Jessie Buckley): relação misteriosa. Crédito da foto: Divulgação

Nildo Benedetti - [email protected]

Caro leitor, para escrever sobre esse filme de 2020 de Charlie Kaufman, terei que revelar aspectos que podem estragar as surpresas.

Jake está viajando de carro para apresentar aos seus pais sua namorada Lucy. Nas conversas durante a viagem, o casal mostra afinidade de interesses intelectuais. Os pensamentos de Lucy revelam sua inquietação a respeito de seu relacionamento e, por isso, ela repete continuamente “estou pensando em acabar com tudo”.

O diálogo de Lucy e Jake, o jantar com os pais de Jake e os acontecimentos que o sucedem são enigmáticos, porque dão pistas ao espectador para, em seguida, mostrar que ele se equivocou. É o caso do nome de Lucy, que vai mudando ao longo do filme: Lucia, Yvonne, Louise, Amy etc. Ela é bióloga, física, conhece cinema, seu apreço pela poesia passa de desinteresse -- “Não sou muito de metáforas” -- para a capacidade de recitar um longo poema sobre a solidão, a velhice e a morte, que ela diz ou pensa ser de sua autoria (na verdade, é da poetisa canadense Eva H.D). As pinturas de paisagens que ela mostra ao pai de Jake como sendo de sua autoria -- ou acredita que sejam suas -- são, na verdade, obras de Ralph Albert Blakelock. Ela fica perplexa quando descobre telas pintadas por Jake.

Poderíamos seguir adiante com outros exemplos, mas vemos que eles sugerem que, de fato, não temos meios de saber quem ela é passamos a duvidar que ela realmente exista. Na ficha técnica do filme, ela é apresentada como “Uma jovem mulher”, sem um nome específico. Ao citar William Wordsworth, Jake diz que ele fez poemas para “uma bela mulher idealizada chamada Lucy”. O espectador pode então admitir que a “jovem mulher” é criação idealizada do próprio Jake.

Mas a narrativa da viagem do casal é algumas vezes interrompida por curtas cenas de um idoso, sem qualquer ligação direta com a trama, que sai de casa para executar suas tarefas de zelador de um colégio. Várias situações identificam o zelador ao próprio Jake: a casa ocupada pelo velho no início do filme é a dos pais de Jake, as duas jovens estudantes que riem do modo de caminhar do zelador são garçonetes da estranha sorveteria aberta em noite de nevasca no meio do nada, e muitas outras. E quando o zelador é visto em cena pela primeira vez, a voz de Lucy está transmitindo o pensamento do zelador Jake se encaminhando ao suicídio, “pensando em acabar com tudo”.

*

A lógica da narrativa do filme é a lógica de fantasias e memórias dos seres humanos. O velho Jake relembra ou cria acontecimentos da infância e juventude, sua relação conflituosa com os pais, seus amores reais ou fictícios, sua timidez. Ao receber o Prêmio Nobel imaginário, interpreta um trecho do musical “Oklahoma!” em que afirma que encontrará um verdadeiro amor. Homens e mulheres que supostamente passaram por sua vida, com lugar especial para a mãe, aparecem na cerimônia de entrega do prêmio, envelhecidos por maquiagem lamentável, como em um mau teatro.

Penso que os poucos elementos que citei acima sejam suficientes para dar um sentido ao filme, dentre os muitos possíveis. Sugiro que o leitor o assista mais de uma vez para encaixar todas as peças desse quebra-cabeças. Vale a pena.

Na próxima semana escreverei sobre “A história oficial”

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec