Filmes da Netflix: ‘Crimes de família’
Alicia (Cecilia Roth) é uma das três mães vítimas do caráter de Daniel (Benjamín Amadeo). Crédito da foto: Divulgação
Nildo Benedetti - [email protected]
“Crimes de família” é um filme de 2020 do diretor argentino Sabastián Schindel. Podemos caracterizá-lo como um “filme de tribunal”, que geralmente envolve mistério, suspense e provoca tensão. Afortunadamente, “Crimes de família” nos poupa dos clichês comuns do gênero: juiz empedernido, promotor estúpido com vocação para carrasco, advogado bem intencionado e hábil, testemunha surpresa que aparece na hora certa, vitória do bem contra o mal etc.
O casal Alicia e Ignacio mora na Recoleta, um dos bairros mais luxuosos de Buenos Aires. Seu único filho, Daniel, é denunciado por estupro e tentativa de homicídio da ex-mulher, Marcela, de quem estava judicialmente impedido de manter contato há mais de um ano. A proibição de contato de qualquer espécie se estendia também ao filho. Daniel está na prisão enquanto aguarda julgamento.
Com Alicia e Ignacio mora a empregada doméstica Gladys e o filho desta, de três anos, Santiago. Gladys também está presa e sendo julgada por um crime que ela não lembra de ter cometido. Alicia é chamada de tia por Santiago e trata o menino com o carinho de uma mãe autêntica.
As histórias contadas em paralelo de Gladys e Daniel, de início sem qualquer conexão aparente, vão pouco a pouco se juntando. No começo do filme, temos alguma dificuldade de entender os acontecimentos que envolvem Gladys, porque eles são contados ora no presente, ora no futuro. Mas o diretor Schindel, que também colaborou na feitura do roteiro, é muito claro na narrativa e o espectador não terá problemas de acompanhar a trama.
O filme mostra os acontecimentos que envolvem três mães: Alicia, Gladys e Marcela, que estão profundamente empenhadas para proteger os filhos. As mulheres são as heroínas, incluindo uma psicóloga que se dedica em amenizar o sofrimento de Gladys e das mulheres em geral. O filme tem conteúdo social, não só por seu aparente feminismo, mas por mostrar a corrupção e a falibilidade da Justiça, as relações entre classes sociais, a fragilidade e o desmoronamento das relações familiares etc.
*Se o leitor não gosta de saber “o final do filme”, sugiro que pare a leitura por aqui.
O infanticídio de Gladys pode ser visto sob vários pontos de vista: religioso, moral, social etc. Mas, penso que quem analisa um filme - seja espectador ou crítico - deveria evitar emitir juízo a partir de crenças pessoais e se ater ao que o filme lhe diz e formular hipóteses para explicar por que as personagens agem como agem.
“A Infanticida Marie Farrar”, poema de Bertolt Brecht citado ao final do filme, pode nos orientar. Relata o crime de uma órfã menor de idade que deu à luz no banheiro de sua senhora, matou o bebê com as próprias mãos e morreu na prisão. A Justiça foi rigorosa com Marie e ignorou a situação social que a levou a cometer o crime. Na obra de Brecht, miseráveis e rejeitados sociais assumem o papel de protagonistas e heróis, como Gladys, que se vê frente ao sinistro dilema de sacrificar o filho recém-nascido para garantir o futuro do outro filho de quatro anos. Se o leitor for à Internet e ler o poema de Brecht, constatará que “Crimes de família” é a sua livre versão cinematográfica. Daí ser “baseado em fatos reais”.
Na próxima semana escreverei sobre “Estou pensando em acabar com tudo”.
Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec