Filmes da Netflix: ‘Cinema, aspirinas e urubus’
Ranulpho e Johann: visões antagônicas sobre a vida, o sertão e o Brasil. Crédito da foto: Divulgação
Nildo Benedetti - [email protected]
Este longa-metragem de 2005 é a obra de estreia do diretor Marcelo Gomes e relata a jornada de dois homens, Ranulpho e Johann, que em 1942, circulam no interior do Nordeste exibindo filmes publicitários de aspirina.
Uma das metas da ditadura de Getúlio Vargas foi a de estabelecer a ordem no País. A morte de Corisco em 1940, levou ao fim do cangaço no Nordeste, mas a região ainda viveria décadas de violência, atraso político e econômico -- estes últimos mostrados no filme (por razões profissionais, conheci o interior mais retirado de todos os estados do Nordeste a partir de 1956, por mais de 40 anos).
Johann fugira da Alemanha para não ter que matar na guerra. Mas quando o Brasil declara guerra à Alemanha, vê-se novamente frente ao conflito e deve optar entre voltar ao seu país ou seguir para um dos campo de concentração criados em vários estados brasileiros a partir de 1942, que receberam cerca de três mil pessoas de origem alemã, italiana e japonesa (em alguns, o tratamento dado aos prisioneiros era razoavelmente humano, mas em outros os detentos eram submetidos a trabalho forçado). Johann resolve então emigrar para a Amazônia.
Quando os seringais da Malásia passaram ao controle dos japoneses em 1941, a necessidade da borracha pelos EUA desencadeou na Amazônia o Segundo Ciclo da Borracha (1942-1945). Para reativar a atividade seringueira, seriam necessários 100 mil homens. O alistamento era feito por um órgão do governo federal com sede em Fortaleza, A escolha do nordeste como fonte emigratória procurava amenizar os efeitos da crise que os camponeses enfrentavam por causa da seca devastadora na região. Cerca de 30 mil seringueiros morreram abandonados na Amazônia por malária, febre amarela, hepatite e ataques de animais. Apenas conseguiram voltar ao seu local de origem, com seus próprios recursos, cerca de seis mil homens.
Ranulpho e Johan são muito diferentes. O primeiro é perfeitamente adaptado à condição perigosa do sertão. É um homem esquivo, olha de soslaio, não fala da sua vida, odeia o sertão e seus habitantes. Cita o adágio “Feliz do bicho que come o outro‘, de duplo sentido. Não sabemos o que realmente pensa e qual seus sentimentos com respeito a Johann. Sua desistência de embarcar para a Amazônia pode ter sido um ato premeditado para se livrar de Johann e ficar com seus bens (sua alegria dirigindo o veículo ao final do filme não é a de quem acaba de perder um amigo querido). Por outro lado, Johann tem visão idealizada do Brasil, é pacifista, dá valor à vida (abandona na estrada um homem que matara uma ave); seu destino talvez tenha sido trágico. É levado para um trem que se parece aos “trens da morte” que se dirigiam aos campos de extermínio da Europa e que são simbolizados pelos urubus que rondam o cenário e estão no título do filme.
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Duas mulheres do filme ilustram a condição feminina na região. Jovelina, que é expulsa pelo pai, talvez porque “deu um mau-passo”, e possivelmente cairá na prostituição em Recife. E Adelina, troféu de um político que quer mostrar-se avançado e culto, exibindo a mulher e pinturas modernas.
Na próxima semana escreverei sobre “Roma”.