Filmes da Netflix: ‘A trincheira infinita’
Higino (Antonio de la Torre) e Rosa (Belén Cuesta): envolvidos numa guerra fraticida que mostra o lado pior do ser humano. Crédito da foto: Divulgação
Nildo Benedetti - [email protected]
Na semana passada, a respeito do filme “Gandhi”, escrevi que ideias como ideologia, nacionalidade, patriotismo, religião etc. podem ser empregadas pelos líderes como forma de agrupar seguidores na implementação de valores positivos, mas podem também ser utilizadas para gerar conflitos internos e externos, tirando proveito da tendência humana à agressão -- tendência que Freud chamou de pulsão de morte.
Nas eleições municipais de 1931, uma coligação de socialistas, republicanos de esquerda, comunistas e anarquistas estabeleceu maioria política na Espanha, mas a depressão econômica da década de 1930 dificultou a continuidade das reformas introduzidas pela coligação. Surgem várias organizações antirrepublicanas que combatem o regime: a Falange Espanhola, conforme modelo da milícia de Mussolini, com o objetivo de restaurar as glórias passadas da Espanha e o peso do catolicismo no país, e a Renovação Espanhola, de tendência monarquista. Em julho de 1936, o general Francisco Franco comanda o golpe militar contra a República que deu origem à Guerra Civil Espanhola, um conflito sangrento em que morreram em campos de batalha ou foram executados entre 700 mil e um milhão de pessoas. A República era apoiada por operários, camponeses e setores das classes médias e contava com destacamentos de voluntários, contingentes policiais, contingentes leais da aviação e de algumas unidades militares.
“A trincheira infinita” começa em 1936. Higino, um partidário do governo, é denunciado por um vizinho partidário de Franco. É conduzido para ser executado, mas consegue fugir. Volta para casa e sua esposa o esconde no porão até 1969, quando os foragidos da guerra civil foram anistiados.
A pergunta que o filme propõe é: por que numa comunidade que vive seu dia a dia normalmente, em que quase todos se conhecem, pode rapidamente aflorar tanto ódio de uns pelos outros, dividindo-os em duas facções hostis igualmente violentas, ansiosas por matar?
A resposta a essa pergunta pode ser dada pelo comportamento das massas.
Segundo Freud, o indivíduo se transforma quando se engaja em grupo como partidário de uma ideia política, membro de uma etnia, instituição. O grupo adquire uma espécie de mente coletiva que leva os componentes a sentir, pensar e agir de maneira uniforme e muito diversa daquela que cada membro individualmente sentiria, pensaria e agiria, por mais similares ou diferentes que sejam seus modos de vida, suas ocupações ou suas inteligências. A tendência agressiva liberada faz que o indivíduo mostre a parte obscura do seu caráter -- que é a parte obscura do caráter de qualquer ser humano -- e que as restrições impostas pela vida em sociedade obriga-o a esconder e controlar. Pode perder ou transformar sua compreensão do que é certo ou errado e passar a sentir prazer extraordinário em matar cruelmente, estuprar, torturar.
Isto explica o comportamento humano na Guerra Civil Espanhola, em que espanhóis mataram espanhóis com a crueldade e a ferocidade que provavelmente não teriam com estrangeiros. Tudo conduzido por líderes de direita e de esquerda cheios de ódio e que se intitulavam guardiães de padrões morais, patrióticos e religiosos.
Na próxima semana escreverei sobre “Pastoral americana”.