Filmes da Netflix: “A sun” (Um Sol)
A-ho e o pai: o penoso caminho do filho na recuperação e no rearranjo da família. Crédito da foto: Divulgação
Nildo Benedetti - [email protected]
Este filme do diretor de Taiwan Chung Mong-hong se presta à reflexão sobre relações familiares, assim como o georgiano “My happy Family”, sobre o qual escrevi na semana passada.
Os dois irmãos, A-hao e A-ho são muito diferentes: o primeiro, o mais velho, é brilhante, desde criança amado por todos, bom aluno, decidido a estudar medicina; A-ho, o mais novo, passou a exibir comportamento divergente na adolescência e acabou sendo preso em um reformatório por um ano e meio. Durante sua permanência na detenção, ocorreram vários acontecimentos: seu casamento, o nascimento do filho e o suicídio do irmão. Como a família é um grupo social em que cada indivíduo é continuamente influenciado pelos demais e ao mesmo tempo os influencia, esses fatos acabam por levar as relações familiares a um rearranjo radical. A seguir farei algumas conjecturas para tentar entender as razões desse rearranjo.
Os acontecimentos da vida de A-ho acima enunciados devem ser interpretados, em seu conjunto, como um sistema. Até mesmo o violento reformatório pode ter contribuído positivamente na vida de A-ho, quando combinado aos outros fatores, porque pode tê-lo conscientizado da vida a que estava destinado se continuasse no crime.
Um dos subsistemas da família de A-ho é composto pelo pai e os dois filhos. Os pais, escreve Salvador Minuchin, não podem guiar sem, ao mesmo tempo, controlar e reprimir e os filhos não podem crescer e se tornarem individualizados sem rejeitar e atacar. Portanto, o processo de socialização é inerentemente conflitante, principalmente na adolescência. Mas, os pais devem ser capazes de deixar o filho realizar o seu próprio desejo, ou seja, sua vocação, sua inclinação, a aspiração que move seus interesses. O filho mais velho, A-hao, submete seu desejo ao desejo dos outros e a impossibilidade de realizar o seu próprio desejo pode tê-lo levado ao suicídio. Sua conturbada vida interior nem é notada pelos familiares, porque ele trata de poupá-los de qualquer sofrimento: arruma seu quarto antes do suicídio, despede-se do irmão, etc. A simbologia do Sol é de variedade enorme e na China, conforme a lenda, teriam existido inicialmente dez sóis que tornavam a terra inabitável. Quando A-hao diz que não consegue se livrar do calor e da luz do Sol, pode estar se referindo que, para ele, o mundo se tornou inabitável.
Por que A-ho, na adolescência, descamba para a delinquência? Arriscaria a hipótese de que escolheu a forma de encontrar externamente o lugar que não pode usufruir na família, por causa da assimetria de tratamento do pai em relação aos dois filhos. A competição com o irmão, normal na vida familiar, se encerra com o suicídio de A-hao. A-ho procura ocupar o lugar do irmão e se torna um pai e marido melhor do que o seu próprio pai.
Quando A-ho era criança, sua mãe conduzia-o na bicicleta e ele não queria que ela parasse de pedalar, forma de permanecer colado a ela em busca do aconchego -- tão precioso quando o pai é ausente. Ao final do filme, tudo muda: agora é ele que conduz a bicicleta e quer aconchegá-la.
Deixo para o leitor associar “A sun” com a Parábola do Filho Pródigo.
Na próxima semana escreverei sobre “O sniper americano”.
Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec.