Filmes da Netflix: ‘A História Oficial’
Alicia (Norma Aleandro) vive o pavor de perder a filha adotiva de cinco anos. Crédito da foto: Divulgação
Nildo Benedetti - [email protected]
Durante a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, as Forças Armadas de vários países da América Latina tomaram arbitrariamente o poder sob a justificativa de impedir o avanço do comunismo na região. Entre os anos de 1976 e 1983, a Argentina viveu sob uma ditadura militar sangrenta, denominada Processo de Reorganização Nacional. Estima-se em mais de 30 mil o número de opositores do regime mortos ou desaparecidos, uma parte por embarque nos “voos da morte”, que consistiam em jogar no mar opositores ainda vivos, usando aviões militares. Cerca de 500 bebês nascidos em hospitais militares ou nos centros clandestinos de detenção de mães consideradas subversivas foram sequestradas e adotadas ilegalmente por famílias, geralmente ligadas à ditadura. As mães eram mortas de várias formas, incluindo nos “voos da morte”.
São esses acontecimentos históricos e políticos que desencadearam o drama tratado em “A História Oficial” de 1985, do argentino Luis Puenzo.
O filme começa com alunos e professores na parte ao ar livre de uma escola cantando, sob chuva, o hino nacional argentino, que exalta a liberdade e a igualdade do povo. Antes do final do filme, o espectador se dará conta de que a letra do hino soa totalmente irônica. Cantando sob um guarda-chuva está Alicia, que leciona a história das instituições sociais e políticas desde 1810 no país. “Ao compreender a história, aprendemos a compreender o mundo”, frase muitas vezes repetida, mas que assume significado específico no filme, uma vez que ela mesma ignora o que se passa no país. Ela é casada com Roberto, um homem com conexões no governo e que, como muitos civis, incluindo empresários, aderiram ao regime de formas menos ou mais violenta.
Em 1983, ano em que a ditadura argentina terminou, uma amiga que Alicia não via desde o golpe militar de 1976 relata que havia sido presa e torturada para informar o paradeiro de seu antigo namorado, com quem ela havia rompido dois anos antes. Por meio da amiga, Alicia começa a se inteirar das atrocidades cometidas pelo regime. E quando vê manifestantes de rua que exigem saber onde estão as mães e os bebês desaparecidos e que o governo devolva as crianças nascidas nas prisões, questões relacionadas à filha que ela adotou há cinco anos começam a perturbá-la. Passa a investigar se a verdadeira mãe ainda vive, se a adoção se deu por vias legais -- como o marido afirma -- ou se foi roubada de alguma mãe na prisão.
Em suas pesquisas, Alicia conhece uma senhora idosa que talvez seja a avó da sua filha adotiva. Embora normalmente devessem ser inimigas, estabelecem uma relação de mútua compreensão.
O cerne dramático do filme reside no dilema moral de Alicia entre levar à frente sua vida atual equilibrada e confortável ou procurar a mãe da menina. Procurar pela mãe equivaleria à possibilidade de perder a filha a quem ama profundamente e mantê-la seria cometer o crime imperdoável de tirar uma filha da mãe que a trouxe ao mundo.
O maior mérito de “A História Oficial” é tratar da crueldade da política na Argentina durante a vigência da ditadura militar por meio da história de uma família.
Na próxima semana escreverei sobre “O dilema das redes”.
Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec