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Figuras de linguagem na MPB

15 de Março de 2019 às 00:01

João Alvarenga

É sabido que as figuras de linguagem são recursos estilísticos que embelezam a criação literária; porém, tais estruturas não se restringem apenas ao campo da poesia, pois de Cartola a Cazuza, encontramos um rico acervo de canções que são verdadeiras obras-primas do cancioneiro popular. Logo, não é exagero afirmar que em: “as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti”, Cartola deu uma nova roupagem à desgastada Personificação, que atribui características humanas aos seres inanimados. Do rol das figuras, esta, talvez, seja mais conhecida pelas crianças, porque está presente na literatura infantil.

Já a Hipérbole ganhou maior notoriedade nos versos de Cazuza: “Jogado aos teus pés/Eu sou mesmo exagerado/Adoro um amor inventado”, cuja marca é o extremo. No entanto, as ideias hiperbólicas estão presentes no cotidiano: “estou morrendo de fome” ou “expliquei isso mil vezes”. Também encontramos tais construções até nas narrações radiofônicas, já que os locutores recorrem aos excessos, a fim de enfatizar a dramaticidade do confronto. Observem: “partiu a bomba e a bola tirou tinta da trave”.

Na esteira da criatividade musical, até mesmo o “maluco beleza”, Raul Seixas, abusou das metáforas em muitas de suas letras, que sempre tiveram um tom provocador. Notem: “eu sou a luz das estrelas/ Eu sou a cor do luar/ Eu sou as coisas da vida/ Eu sou o medo de amar”. Esses versos se tornaram o brado de uma geração que buscava independência de pensamento, no auge da contracultura. Destacamos que a característica desse recurso é a presença do verbo “ser”, nessas construções, pois tal figura é uma comparação abreviada, em que um termo substitui o outro.

Na genialidade de Noel Rosa, a Antítese, ou seja, oposição de ideias, ganha maior expressividade em: “Perto de você me calo/Tudo penso e nada falo”, extraído da belíssima letra de “Último desejo”, de 1927, em que o eu lírico da canção mostra-se indignado pelo fim do relacionamento amoroso, provocado por fofoqueiros de plantão.

Em Chico Buarque, o suprassumo da Metonímia fica evidente na enigmática canção “Pedaço de mim”, em que os versos: “Oh, pedaço de mim/Oh, metade arrancada de mim/ Leva o vulto teu”, exemplificam com arrojo essa figura, que apresenta refinadas situações, cujo contexto define o sentido. Nessa mesma canção, temos ainda um claro Paradoxo (contradição de ideias): “(...) Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu”.

Vale salientar que, dentre as figuras estudadas, a ideia paradoxal é a que mais se impõe, na realidade brasileira, ao quebrar a lógica das verdades absolutas, principalmente em nosso país, em que as contradições são muito visíveis em vários contextos. É bom lembrar que, no fragmento extraído da letra de Chico, para análise, a dor descrita se impõe, amargamente, pela ideia de arrumar o quarto de quem nunca voltará para ocupá-lo. É algo muito triste, porém, belo ao mesmo tempo.

Para finalizar, é interessante observar outro exemplo de originalidade extrema, que pode ser encontrado na carreira de Caetano Veloso, que sempre esbanjou talento com suas inventivas letras que exploram, principalmente, as figuras sonoras. Os arranjos: “(...) Berro pelo aterro, pelo desterro/Berro por seu berro, pelo seu erro/Quero que você ganhe, que você me apanhe/Sou o seu bezerro gritando mamãe”, extraídos de “Qualquer coisa”, exploram a pouco conhecida Paronomásia, em que ocorre um sutil jogo sonoro de palavras de sons parecidos, mas sentidos diferentes. No próximo, focaremos a problemática dos vícios de linguagem em nosso idioma. Até lá!

João Alvarenga é professor de Língua Portuguesa, mestre em Comunicação e Cultura, produz e apresenta, com Alessandra Santos, o programa Nossa língua sem segredos, que vai ao ar pela Cruzeiro FM (92,3 MHz), às segundas-feiras, das 22h às 24h.