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Esparrelas da língua, um dilema (parte 1)

26 de Outubro de 2018 às 10:50

As regras que padronizam nossa língua são compostas de muitas esparrelas que, na maioria das vezes, são ignoradas pelos utentes. Isso pelo fato de se tratar de um assunto muito teórico, repleto de detalhes, que nem sempre são perceptíveis num primeiro momento. Todavia, quem convive mais intimamente com o idioma, por conta do ofício (professores e jornalistas), não só observa tais sutilezas como, também, identifica algumas contradições gramaticais.

Para exemplificar, refiro-me, primeiramente, ao emprego da preposição que, segundo o gramaticista Evanildo Bechara, é uma unidade desprovida de independência, ou seja, não aparece sozinha no discurso e, dependendo do contexto, pode apresentar variados sentidos. Assim, na frase: “Onofre cortou o pão com a faca para Anésia”. O trecho destacado, morfologicamente, devido ao emprego da preposição, é uma locução adverbial de instrumento. Na sintaxe, torna-se um adjunto adverbial de instrumento.

Lembrando, a análise sintática classifica os termos em: essenciais (sujeito e predicado), integrantes (complementos verbais e nominais) e acessórios (adjuntos adverbiais, adjuntos adnominais, aposto e vocativo). A gramática reza que os essenciais e os integrantes não podem ser removidos da oração, pois pode comprometer o entendimento do discurso. Já os acessórios apresentam algumas contradições, porque se afirma que são removíveis, sem danos ao contexto, mas nem sempre isso é possível.

De certo modo, a questão não é tão simples assim, porque na frase acima, a expressão “com a faca” não deve ser removida, porque a construção: “Onofre cortou o pão Anésia”, ficaria sem sentido pleno. Além de deselegante.

Assim, a prática nega a teoria, pois nem sempre os acessórios podem ser retirados das orações. Para aprofundar um pouco mais essa discussão, observe o exemplo: “Rita mora perto da praia”. A expressão destacada é, sintaticamente, um complemento nominal que, de acordo com norma culta, jamais, pode se ausentar das orações. Nesse caso, a gramática tem toda razão. Porém, a questão não fica apenas nisso, pois o vocábulo perto, que está anteposto à expressão “da praia”, morfologicamente, é um advérbio de lugar, e um adjunto adverbial na sintaxe. Por ser um acessório, alegam alguns especialistas que pode ser removido da oração.

Porém, recorri a esse exemplo para mostrar um evidente paradoxo gramatical, pois se “da praia” não pode removido do contexto, o advérbio “perto” também não. Veja como ficaria desastrosa a construção: “Rita mora da praia”. Nesse caso, é possível perceber que a retirada de tal termo, a priori, removível, prejudica o nexo. O mesmo acontece se a expressão “da praia” ficar ausente do contexto, pois o advérbio solicita um complemento. Logo, o complemento nominal se ajusta ao papel que lhe cabe: completar o sentido de uma palavra vaga ou transitória na língua. Assim, como em casos de adjetivos, em: Munir era o exemplo da família. Ou, ainda, palavras abstratas: Prima Biela tinha medo do escuro. Os vocábulos “orgulho” e “medo” solicitam complementos de sentidos.

No entanto, esse assunto sempre gera dúvidas, principalmente quando o assunto é perceber a sutil diferença que há entre o adjunto adnominal e o complemento nominal, algo muito cobrado em concursos públicos. Aliás, isso é uma verdadeira armadilha, porque os adjuntos adnominais e os complementos nominais, em algumas circunstâncias, apresentam certas singularidades, que provocam inquietações em quem tenta entender os mecanismos da gramática.

Então, para não confundir ainda mais o leitor com tantas informações, ao mesmo tempo, darei continuidade a esse enfoque no próximo encontro. Até lá.

João Alvarenga é professor de Língua Portuguesa, mestre em Comunicação e Cultura e, apresenta com Alessandra Santos, o programa Nossa Língua sem Segredos, que vai ao ar pela “Cruzeiro FM” (92,3 MHz), sempre às segundas-feiras, das 22h às 24h.