Entre remorso e ansiedade
Leandro Karnal
Chegamos a 2020. Quando eu era adolescente, fazíamos o cálculo de quantos anos teríamos no ano 2000. Eis que já se passaram duas décadas daquele horizonte de futuro. O tema não é ideal para sentimentos de ano novo, mas nos próximos 30 anos terminará a maior parte da geração baby boomer, aquela que assistiu à emersão do admirável mundo novo da tecnologia e viu surgir o computador, o celular e a internet.
Já somos testemunhas estranhas de coisas como datilografia, telegrama ou mimeógrafo. Depois de nós, nenhum ser vivo terá usado isso e apenas museus de tecnologia mostrarão a jovens nascidos na década de 2020 os aparelhos que eles, talvez, comentarão com piedade similar àquela com que observamos machados do paleolítico: “nossa, eles usavam isso”.
Ano-novo não é lugar de memória do passado, mas de projeção para o futuro. Muitos budistas afirmam que o excesso de ênfase no passado aumenta remorso e culpa. Projetar toda sua atenção para o futuro pode estimular ansiedade. O ideal não estaria em trabalhar instâncias temporais imutáveis ou abertas (o que já ocorreu e o que existe no porvir). Um homem sábio viveria o aqui e agora, o presente, o único momento em que minha ação pode exercer influência direta.
A chave parece estar nesse equilíbrio entre remorsos, melancolias do passado e ansiedade pelo que pode ocorrer daqui para frente. Recentemente, desenvolvi o hábito de fazer um exercício mental de me perdoar pelo passado. Fiz muitas escolhas erradas, disse coisas ruins para pessoas que eu amo, fui seco e grosseiro sem necessidade, reagi com impaciência a gestos de amor e, como quase todos os descendentes de Adão, fui babaca inúmeras vezes.
Tenho desenvolvido a experiência de tentar aprender sempre com os erros e, sem esquecê-los, deixar de cultivar o fel do remorso. Em resumo, perdoar-se pode ser um exercício curioso. Os fatos ocorridos são imutáveis, a memória pode ser pedagógica e deixar de pesar. Experimente, nesse início de novo ano, fechar os olhos e dizer que seus erros foram tão fundamentais para seu progresso como para seus acertos.
Peça as desculpas a quem acha que ofendeu e, em seguida, a você mesmo. As dores moldaram sua biografia e sua consciência. Eu fiz e percebi que isso tem um imenso poder de ressignificar o passado. Também percebi que perdoar a si ajuda a conviver com a imperfeição alheia. Diminua sua dor e ela não fará eco à dor alheia. Sua família não é perfeita e isso é ótimo, você desejaria ser um desajustado em uma família ideal? Seus colegas de trabalho são chatos por vezes, bem parecidos com o cara que você olha toda a manhã no espelho.
Diminuir remorso do passado sem esquecer erros (para que continuem sendo pedagógicos) é um salto e tanto. Trata-se de um exercício de sabedoria. O outro gesto, coerente tanto com religiosos como com filósofos estoicos, diz respeito a não sofrer com o que não existe, o futuro. A ansiedade (eu sou muito ansioso) é um defeito, pois aumenta, com a bruma do medo, o vulto embaçado do amanhã.
O que teremos pela frente neste ano? Certamente problemas muito complexos, como tivemos sempre. Eles podem ser vencidos (como foram os anteriores) ou podem nos vencer (como já ocorreu). Nos dois casos, é pouco produtivo pensar que minha acidez estomacal ditada pela angústia de hoje possa dissolver o drama do amanhã.
Durma como um justo ou revire-se agitado e angustiado no leito a noite toda e, fato indubitável, o amanhecer chegará igual com a luz do novo dia e novos problemas. Remorso pelo que houve e ansiedade pelo que pode vir são uma dupla irracional que afeta o único momento da ação efetiva que é agora.
É uma escolha estratégica de concentração e foco para o símbolo do ano novo. O mais elaborado antecipador que está pagando, desde agora, o plano funerário para ter um bom enterro é alguém que toma decisões hoje e paga hoje e atua hoje, mesmo que seja o longínquo e indesejado dia da morte.
A própria noção de estratégia mira no futuro, todavia cria táticas no presente. Focar no presente não significa esquecer-se do futuro; implica saber que o futuro será consequência do que for realizado hoje, apenas hoje, exclusivamente no instante atual.
Quem se preocupa em demasia com fatos hipotéticos não acrescenta um minuto de tranquilidade à vida. Melhor do que ter usado branco no réveillon, mais útil do que a lentilha que talvez tenha sobrado da festa, melhor do que amuletos é a ação real e efetiva hoje. Um fundo de reserva por menor que seja, hábitos saudáveis, melhorias no convívio com as pessoas, metas claras e exequíveis, diminuição da angústia pela reflexão e, enfim, a decisão de ser protagonista hoje são melhor do que toda a “energia” de gestos mágicos.
Entre remorso e ansiedade abre-se o novo ano e suas possibilidades. As contas continuarão chegando e as pessoas serão o que sempre foram. Os dramas da política fluem como sempre e continuarão. Não vivemos o inferno total e o paraíso continua distante. Estamos abaixo da Suécia e acima da Venezuela. Temos mais poder do que um cascalho e menos do que Deus. No meio dessas impossibilidades ilimitadas, nossa vida única e irrepetível chega ao limiar da nova etapa. Evitar a morte é bom, porém, acima de tudo, o desafio maior é viver. Feliz ano-novo a todas as minhas queridas leitoras e estimados leitores. Que venha 2020!
Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.