Enredo, cenário e elenco
Talvez tenha ocorrido no domingo passado ou nos eventos do fim de ano. Você preparou o enredo para uma reunião familiar. A ideia era uma mesa bonita e gente feliz ao redor dela. Se você for um detalhista e seu nível de organização algo elevado, gastou um tempo preparando uma trilha sonora. Os convites são essenciais e complexos. As pessoas foram pensadas detidamente, tanto as que você gostaria de verdade que viessem como as obrigatórias. Talvez tenha pesado o custo de chamar ou não determinado parente: o que causaria menos dano? Logísticas familiares podem fazer inveja a estratégias de acordos diplomáticos internacionais. Todo o planejamento faz parte do enredo. Sempre há alguém elaborando roteiros na família.
Passada fase do enredo, temos o cenário. A produção sempre recairá sobre uma ou poucas pessoas. Em todas as famílias (e casais) há jardineiros e há flores; pessoas que cuidam e outras que são cultivadas. Há quem chegue para o almoço com a roupa do corpo. Nada fez ou preparou e, com sorte, será uma flor sorridente. Eu chamo esses de “tipos mágicos”, pois acreditam que tudo brota de um portal sobrenatural no teto da sala de jantar. Como em um jardim, quanto mais o jardineiro regar e cuidar, mais as flores serão viçosas e... dependentes. Em outras palavras, se você assumiu muitas coisas, não reclame, pois criou um jogo que tem como efeito o afastamento de outras pessoas. Por que mimamos pessoas e depois reclamamos que elas nada providenciam? Por que estranhamos o quadro que resultou do nosso pincel zeloso?
O enredo é o encontro familiar. O cenário foi realizado com gosto e dentro do possível. Aí chega a participação final: um elenco que não foi perfeitamente informado dos tópicos narrativos da obra e não se sente comprometido com o cenário.
Você marcou o almoço para as 13h e alguns chegaram às 15h30? Você disse que estava tudo pronto e seu parente trouxe um vaso de crisântemos amarelos, aquela curiosa flor que engolfa tudo em cheiro de necrotério? O encontro era formal e alguém apareceu de bermuda e chinelo? Um se colocou a beber imediatamente e foi ficando inconveniente? Em resumo: o elenco não foi treinado para seu enredo e não está muito atento ao cenário.
Todo jardineiro espera muito das suas rosas, todavia nunca leva em conta que a rosa se acostumou a ser cuidada e nunca viveu outra situação. É da natureza e da biografia da planta mimada esperar adubo, água, defesa contra ervas daninhas e companhias agradáveis no canteiro família-coração. Como supor algo distinto? Também há plantas espinhentas como os cactos que nunca poderão estar ao lado de flores que exigem muita água. Não é culpa da flor ou do espinho, apenas da junção aleatória e infeliz de duas espécies distintas quanto à demanda hídrica. Há parentes que não podem existir no mesmo espaço-tempo.
Bom roteiro, cenário possível dentro da verba e, por fim, elenco disperso e pouco focado. Por que não ficam um pouco mais? Por que partem como que perseguidos por uma horda assim que o último pedaço de doce se dissolve nas bocas? Por que não se cria um clima da alegre conversa após a refeição? Qual a explicação para a fuga como se fossem um bando de suricatos na presença de predadores selvagens? Obviamente pelo mesmo motivo que os alunos entram em uma escola com lentidão e dela escapam com velocidade inacreditável: o espaço incomoda.
Talvez seja uma percepção dolorosa: o enredo do especial de fim de ano (episódio “almoço em família”) era um projeto seu. Houve o esquecimento de combinar com o time adversário. Talvez adversário seja palavra forte, diremos apenas que o entusiasmo do diretor não contagiou o elenco. Poucos queriam. Sua dor é narcísica: você (e eu) demos muito afeto, tempo e Dinheiro para o que deveria ter ocorrido. O público compareceu com aplausos escassos.
O que fazer? Nunca sei. O primeiro passo é um exercício de humildade: meu projeto não é o de todos. Meu enredo tem ibope baixo para plateias mais amplas. Consideraram meu argumento, família feliz, algo ultrapassado. Você com imaginário de Pollyanna Moça e o ibope pendendo para dramas de compartilhar o mesmo sobrenome? Foi Freud ou Nelson Rodrigues que detonou o idílio do seu desejo?
Você tentou muito e só recebeu indiferença ou até irritação? Hora de reler Augusto dos Anjos: O beijo, amigo, é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja... Se o homem que tinha sobrenome “dos Anjos” pensava assim, o que você, sem o traço celeste no DNA, poderia viver?
Um psicanalista talvez perguntasse se você prepara tudo com tanto esmero por prazer ou por vontade de controlar. Afinal, se só você quer de tal jeito, seria um gesto de abnegado amor familiar ou de cultivo de maciço egoísmo? Não existe muita escapatória. Para ser feliz, imagine uma possibilidade: faça algo se quiser e siga o conselho de todos os grandes filósofos estoicos e líderes religiosos.
Que segredo é esse para evitar o rancor? Fazer para você e porque você gosta, apenas. Sem sentido, dimensão ou propósito maior do que o seu desejo. Por fim, um exercício curioso: se você deixasse de ser jardineiro ou jardineira, as flores se quedariam desamparadas ou, enfim, o jardim assumiria a forma que sempre almejou e mais natural, sem sua topiaria meticulosa? Seriam as flores ingratas ou o jardineiro autoritário? Bom domingo para todos nós, jardineiros e flores.
Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.