Buscar no Cruzeiro

Buscar

Enquanto Vocês Estudavam - Carta ao Dr. Roberto Tarpinian

15 de Dezembro de 2018 às 00:01

Enquanto Vocês Estudavam -- Carta ao Dr. Roberto Tarpinian Ilustração: Vanessa Tenor

Caro colega e ex-aluno

Quando nos encontramos naquele restaurante você contou que, neste dezembro, comemora 50 anos de formado. Data importante a ser destacada, pontificou sua esposa. Com a gentileza que sempre fez parte de seu caráter, nos convidou a participar do almoço com os ex-alunos daquele longínquo 2º ano da Faculdade.

Dos poucos títulos conquistados, envaidece-me o de professor. Das recompensas, ser lembrado pelos alunos. Sou o único sobrevivente da Parasitologia. Professor D’Andretta e Dr. Mello já partiram. Também recolhidos ao descanso eterno, quase todos que militavam nas disciplinas básicas. Dra. Diana Tannos (Histologia), Dr. João Aguiar e Dr. João Rozas (Anatomia) e este escriba, os sobreviventes.

Vocês ingressaram na Faculdade em 1963. Os anos 60 foram dias de grandes transformações. Para reviver memórias, resolvo dar uma espiada no que acontecia enquanto vocês estudavam. Envolvidos com os vestibulares, provavelmente mal prestaram atenção ao plebiscito que devolvia a Jango Goulart o sistema presidencialista de governo. Às voltas com pormenores da arquitetura do corpo humano na Anatomia e da microarquitetura dos tecidos na Histologia ensinada pelo Professor Cerrutti, que viria ser seu paraninfo talvez nem tenham notado a beleza de Ieda Vargas, 1ª brasileira eleita Miss Universo 1963. Estavam enfiados nos textos de Bioquímica para as provas parciais, quando faleceu João XXIII e o conclave elegia o Cardeal João Battista Montini, sob nome Paulo VI. É possível que tenham curtido Jorge Ben (Mais que Nada e Chove Chuva), Ray Charles (I can’t stop lovin’ you) e Noite Ilustrada levantando a poeira e dando a volta por cima, no hit do médico Paulo Vanzolin. Talvez tenham admirado a bela cinematografia em largos planos, do filme Lawrence da Arábia. Dirigido por David Lean, grande vencedor do Oscar de 68. Ou lamentado “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, não ter sido eleito o melhor filme estrangeiro do ano. Imersos no sonho de exercer a Medicina, tomara tenham acompanhado o discurso proferido por Martin Luther King Jr, em agosto de 1963. Em cada parágrafo, a frase I Have a Dream fazia estremecer o segregacionismo infame do sul dos USA. Vocês estudavam para os exames finais quando, em Dallas (Texas), uma bala de fuzil esfacelou o crânio de JFK, manchando de sangue e massa encefálica o tailleur rosa de Jakie Kennedy.

Seis anos voaram. Em 1968, outra brasileira Martha Vasconcellos faturou o Miss Universo. Balas cortariam as carreiras de Luther King Jr (Nobel da Paz), de Bob Kennedy e do cearense Edson Luiz. A reação a este último crime, ocorrido na invasão do Restaurante Calabouço (RJ), foi motivo de forte reação popular. Deveriam estar “rachando” para as provas finais no 13/12/2018 quando o AI5 de Costa e Silva inaugurou os anos de chumbo. Prá não dizer que não falei em Festivais, creio tenham torcido por Vandré e cantado quem sabe faz a hora não espera acontecer. Ou, talvez, curtido o desbunde tropicalista de Gil e Caetano.

No 27 de dezembro de 68 o sonho de sua turma se concretizou. Na Catedral, Monsenhor Misiara celebrou missa em Ação de Graças. No Cine São José, homenagem póstuma ao meu amigo Seme Stefano, e os discursos de George Bittar e Humberto Cerrutti.

Reli a lista dos formandos. Furacão, Menegocci, Zé Roberto Ferreira, Swenson, Davi Serson, Amary; estes, como você, ainda por aqui. Ventrella (endocrinologista da minha família), Eunice Del Fiol (diretora da CHS), Isonete (grande pediatra), Walter Lopes Prado (anestesista que me assistiu em cirurgia emergencial de alto risco) partiram sem esperar o cinquentenário.

Aos que vierem, quero lembrar versos escritos pelo seu patrono Dr. Hudson. Pincei-os do poema Reencontro: Estamos aqui! / Presentes, / perfilados. / Histórias, / Vitórias, / Fracasso, / Recordação / -- Muita luta -- cansaço. / No corpo e na alma / trazemos rugas, / marcas, cicatrizes. / Mas, de qualquer modo / -- a nosso jeito -- / fomos até felizes.

Em que pesem rugas, marcas, cicatrizes do corpo e da alma, não percam a capacidade em sonhar e ser felizes. A todos, meus respeitos, saudades e o particular abraço do velho professor e colega.

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve aos sábados neste espaço -- [email protected]